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Humanismo Judaico-portugués

O TRATADO DE RE RUSTICA DE COLUMELA NA VERSÃO PORTUGUESA DE FERNANDO OLIVEIRA

O TRATADO DE RE RUSTICA DE COLUMELA NA VERSÃO PORTUGUESA DE FERNANDO OLIVEIRA

 

António Manuel Lopes Andrade / Carlos Morais

CLC — Universidade de Aveiro


 Artigo publicado em    «Fernando Oliveira: um Humanista Genial» 

Livro de homenagem oferece visão actualizada e global da vida e obra de Fernão de Oliveira

Para assinalar os 500 anos do nascimento de Fernando Oliveira, também conhecido por Fernão de Oliveira (c.1507-c.1582), cerca de 30 especialistas de várias áreas do conhecimento produziram um conjunto de ensaios que foram reunidos no livro «Fernando Oliveira: um Humanista genial», coordenado por Carlos Morais, docente do Departamento de Línguas e Culturas da UA.

Ao longo de mais de 600 páginas, distribuídas por quatro partes – o homem, o filólogo, o marinheiro, o historiador -, são analisados, não só a obra que o tornou mais conhecido entre nós (a primeira Gramática da Linguagem Portuguesa, de 1536), mas também outros escritos pioneiros que, em diferentes domínios do saber (estratégia militar, náutica, cartografia, construção naval, relato de viagens marítimas, agricultura e história), atestam a sua genialidade: a Arte da Guerra do Mar (1555), a Ars Nautica (c. 1570), o Livro da Fábrica das Naus (c. 1580), o relato da Viagem de Fernão de Magalhães, a tradução parcial do De re rustica de Columela, uma cópia incompleta da Arte de Grammatica da Lengua Castellana de António de Nebrija (c. 1579-1580) e o Livro da Antiguidade, Nobreza, Liberdade e Imunidade do Reino de Portugal – um esboço historiográfico que interrompeu para escrever a primeira História de Portugal, já perto da sua morte (c. 1581-1582).


 Edição: Universidade de Aveiro
Coordenação: Carlos Morais, docente do Departamento de Línguas e Culturas da UA
ISBN: 9789727893003
Ano: 2009

 

                                                  ________________________________

Este estudo está centrado na análise da versão manuscrita para português do tratado latino De re rustica de Columela sobre a ciência agrária[1]. Merecem a nossa particular atenção o enquadramento geral da versão portuguesa no quadro do movimento humanista europeu e da transmissão do próprio texto columeliano – seja em língua latina, seja em tradução –, bem como as interessantes anotações que o humanista aveirense foi intercalando ao longo da sua tradução parcial da obra de Columela. Este trabalho apresenta, convém dizê-lo, os primeiros frutos de uma investigação ainda em curso, cujo objectivo final pretende ser a publicação de uma edição moderna desta versão de Fernando Oliveira, acompanhada de um estudo introdutório.

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Lúcio Júnio Moderato Columela (Lucius Iunius Moderatus Columella), natural de Cádis, compôs, por volta de meados do século I d. C., o tratado latino De re rustica sobre a agricultura, que constituía, sem dúvida, a mais importante das disciplinas económicas da Antiguidade. Columela aborda a matéria com a reconhecida autoridade de quem possuía e administrava vastas propriedades agrícolas e pertencia a uma família da Hispânia com tradição firmada na exploração da terra. Escreve, por conseguinte, um amplo tratado com marcado entusiasmo e competência, não hesitando em recorrer, quer à sua experiência e prática na matéria, quer às inúmeras fontes gregas e latinas sobre a ciência agrária, onde pontuavam, desde logo, as obras que Catão, Varrão e o próprio Virgílio haviam dedicado às actividades agrícolas.

                                                         

Columela é, simultaneamente, um homem de letras e de ciência. Era amigo pessoal de Galião, irmão do filósofo Séneca, a cujo círculo de alguma forma pertencia[2], e de Públio Silvino, a quem dedica todos os livros de De re rustica, a sua obra mais importante. Foi, aliás, a pedido expresso de Galião e de Silvino que Columela decidiu compor em verso (hexâmetro dactílico) o livro X do tratado[3], sobre a cultura e arranjo dos jardins (De cultu hortorum), tomando assim a seu cargo o convite endereçado por Virgílio, nas Geórgicas, aos poetas vindouros que desejassem dar continuidade à sua obra[4]. O poeta gaditano não logra alcançar, a não ser em breves espaços, o vigor da criação poética do modelo virgiliano, mas revela, em contrapartida, um conhecimento bastante mais aprofundado da matéria tratada[5].


Columela adopta uma perspectiva eminentemente didáctica na exposição clara e sistemática das técnicas e dos saberes da ciência agrária de que tem um domínio apurado. No entanto, o empenho e entusiasmo que coloca na redacção da obra não ficam a dever-se apenas à sua evidente intencionalidade didáctica ou à proximidade que tinha das matérias, porquanto «escribe como quien tiene un verdadero compromiso com la patria, en la idea de que acomete, como hicieron en su día Catón o Varrón o Virgilio, una empresa de interés nacional»[6]. De facto, o agrónomo latino estava perfeitamente consciente do estado calamitoso a que tinha chegado a agricultura do seu tempo, em grande medida devido ao desleixo, ao abandono e à má exploração das terras, como deixa perceber a leitura do início do prólogo geral do tratado agronómico, na versão de Fernando Oliveira (fls. 177-177v; 180v):


Muntas vezes ouço queyxar os princepes da nossa cidade contra a lavoura e a agricultura, dizendo que não responde como soya. E a causa disso, huns dizem que he a esterelidade das terras, e outros a destemperança do ar, que pello espaço dos tempos se muda. Outros querendo com algũa rezão moderar estes queyxumes, dizem que a terra cansada e esvaecida pella munta fructificação que fez antigamente, não poode jaa manter os homens como dantes fazia (...). Mas vem juntamente co isso pello descuido e negligencia dos homens d’agora que se desprezão de ser lavradores e não tratão a lavoura per sy como fazião os antigos, mas entregamna aos que nem podem, nem sabem // usar della (...). // (...) a agricultura veo em tanto desprezo antre nos que he havida pello mays bayxo e vil officio de todos, e tanto que parece aos homens que não tem necessidade de ser aprendida.

 

 

Columela denuncia, por conseguinte, a situação lastimosa a que chegou a agricultura romana, com o objectivo declarado de procurar regenerar e dignificar a cultura dos campos, uma actividade vital para a existência humana, que constitui, na sua perspectiva, o caminho mais recto e honesto para alguém poder aumentar o seu património. Não resistimos a citar, de seguida, um segundo excerto do prólogo geral da obra (fls. 177v-178), na tradução de Fernando Oliveira, em que se defendem precisamente as vantagens da agricultura face a outras actividades humanas como, por exemplo, o comércio, a guerra, a advocacia ou a navegação marítima:


Eu me espanto por certo de como os homens, em todas as outras artes, buscão os milhores officiaes para se servirem delles, e nesta que mays releva, os piores. E de todas as outras, ainda que sejão vãas, inutiles, viciosas e apartadas do bo saber e virtude, ha hi mestres que as ensinem e discipolos que as aprendão: soo da agricultura não ha mestres nem discipolos, sendo ella muy conforme e favoravel aa boa sabedoria e sendo sem a qual se não poodem manter as respubricas, nem conservar a vida humana. As outras artes ou ajudão ou ornão a vida dos homens, e esta, mays que todas, a sostenta (...) Não soomente he necessaria para sostentar a vida, mas tambem he accommodada para com bo titolo conservar e accrecentar a fazenda sem offensa de Deus. De muntas artes vivem os homens necessariamente, que // se não podem exercitar sem escrupolo da conciencia, como são a mercancia e a guerra, a qual se não poode fazer sem crueldade e roubos e damno de muntos. Tambem são escrupulosas as mecanicas, se não tratão verdade, e algũas outras desnecessarias. Outras, ainda que necessarias, são todavia perigosas, como he a navegação sogeyta ao furor do mar e impeto dos ventos e mesturada com peregrinações. Outras não soomente combatem a conciencia e vida, mas tambem a honra.


            O tratado De re rustica inicia-se com um prefácio geral, em jeito de dedicatória, dirigido à pessoa de Públio Silvino, o culto e rico amigo do autor. A obra compreende doze livros, a que subjaz a seguinte divisão temática: 1.º generalidades, instalação e pessoal da exploração; 2.º cultura da terra: cereais e leguminosas; 3.º , 4.º e 5.º viticultura e arboricultura; 6.º criação de gado; 7.º gado miúdo; 8.º avicultura e piscicultura; 9.º apicultura; 10.º jardinagem; 11.º e 12.º deveres do intendente e da sua mulher[7].

 

O afã com que os humanistas se entregaram à redescoberta de antigos manuscritos veio possibilitar o surgimento de edições e comentários de várias obras da literatura clássica que, graças à descoberta da imprensa, tiveram uma difusão ampla e rápida. Generalizam-se, igualmente, as traduções dos autores greco-latinos nas línguas vernáculas num movimento que ganha cada vez mais forma à medida que se avança no século XVI.


À semelhança do que aconteceu com muitas outras obras da literatura latina, coube ao humanista italiano Poggio Bracciolini, numa das viagens que fez à Alemanha, em 1417, a recuperação de um códice latino, donde muito provavelmente saiu a quase totalidade dos manuscritos de Columela que se conservam[8]. O advento da imprensa proporcionou à obra do agrónomo latino uma ampla divulgação, cujo início ficou marcado pela saída a lume da editio princeps, em Veneza, no ano de 1472. Nos anos subsequentes, a obra de Columela, quase sempre integrada em edições conjuntas do corpus de escritores romanos de re rustica (Catão, Varrão, Columela e Paládio), foi objecto de inúmeras edições e comentários, sobretudo até meados do século XVI (Regii, 1482; Bononiae, 1494; Regii, 1496; Regii, 1498; Regii, 1499; Bononiae, 1504; Parisiis, 1513; Venetiis, 1514; Florentiae, 1515; Florentiae, 1521; Ad Aldinum exemplar, 1528; Parisiis, 1529; Lutetiae, 1533; Venetiis, 1533; Basileae, 1535; Lugduni, 1535; Coloniae, 1536; Lugduni, 1537; Lugduni, 1541; Lugduni, 1542; Parisiis, 1543; Lugduni, 1548; Parisiis, 1553; Lugduni, 1557). Assiste-se, em particular a partir de meados de Quinhentos, a uma diminuição substancial do número de edições latinas do tratado de Columela, em grande parte justificada pelo recuo da língua latina face à afirmação cada vez maior que as línguas vernáculas europeias vinham conquistando.


De facto, é sensivelmente a partir de meados de Quinhentos que são dadas à estampa as primeiras traduções conhecidas para as línguas alemã (Estrasburgo, 1538; Magdeburgo, 1610), francesa e italiana (a versão de Pietro Lauro de Módena publicou-se em Veneza, em 1544, 1559 e 1564). As traduções francesas foram, indiscutivelmente, as mais frequentes. A este propósito, convém mencionar a versão integral do tratado latino do cónego Claude Cotereau, publicada em Paris, em 1551 e 1552, a que se seguiram duas reedições, em 1555 e 1556, no mesmo local, mas enriquecidas com as revisões e anotações de Jean Thierry de Beauvaisis.[9]

 

No entanto, é importante notar que, cerca de onze anos antes, em 1540, o humanista francês Claude Meigret havia publicado, em Paris, uma primeira versão francesa parcial, apenas do terceiro e quarto livros do tratado de Columela[10]. Não podemos deixar de sublinhar a extraordinária coincidência de tanto Claude Meigret como Fernando Oliveira terem traduzido o tratado de Columela (um e outro apenas em parte), tanto mais que o humanista francês, natural de Lião, é o reputado autor da primeira gramática de língua francesa, saída a lume em 1550, na cidade de Paris[11]. Não será de excluir, naturalmente, a hipótese de que Fernando Oliveira tivesse tido contacto com a obra de Meigret durante a sua passagem por França. O humanista lionês publicou ainda um tratado sobre o uso comum da língua francesa (Paris, 1542 e 1545), outras traduções de autores greco-latinos (Salústio, Políbio e Luciano) e uma versão francesa (Paris, 1555) do famoso tratado latino sobre a arte militar (De re militari) do italiano Roberto Valturio (1405-1475)[12].


A versão portuguesa de Fernando Oliveira, pese embora seja difícil precisar a data em que foi escrita, integra-se precisamente neste conjunto das primeiras traduções de Columela para as línguas vernáculas. Além disso, constitui a primeira das traduções conhecidas do Gaditano para qualquer uma das várias línguas faladas na Península Ibérica. Teriam ainda de decorrer mais de 200 anos para que a primeira tradução castelhana da autoria de Juan María Álvarez de Sotomayor fosse publicada, o que apenas viria a ocorrer em 1824[13]. No entanto, notava-se já desde meados do século XVIII um interesse renovado pela obra de Columela, a que não é alheio o papel preponderante que o postulado da fisiocracia concedeu à agricultura no progresso social e no desenvolvimento das nações. De facto, no último terço de Setecentos, assiste-se em Espanha a um conjunto variado de iniciativas voltadas para o estudo, tradução e ilustração da obra de Columela. É este mesmo quadro ideológico, como bem assinalou Eduardo Franco[14], que parece motivar os responsáveis do periódico Annaes das Sciencias, das Artes, e das Letras (Paris, 1818-1822)[15] a patrocinar a publicação da versão portuguesa de Fernando Oliveira do tratado de Columela, transcrita fielmente pelo embaixador Francisco José Maria de Brito, a partir do único manuscrito conhecido, à guarda da então Biblioteca Imperial de Paris[16].


Começando por ter existência autónoma, este manuscrito autógrafo, como comprovam a grafia isométrica e o estilo, acabaria incorporado numa miscelânea de outros manuscritos do autor, recebendo, por isso, uma nova paginação que convive com a primitiva. Este códice compósito, que pertenceu à biblioteca do cardeal Mazarino, entrou nos fundos da biblioteca parisiense em 1668. Registado, sob o n.º 5, no catálogo de Morel–Fatio, é actualmente o n.º 12 do Fond Portugais. Trata-se de um volume de 339 fólios que incorpora, sem qualquer preocupação temática ou cronológica, além da versão portuguesa do De re rustica de Columela (fls. 177-272), a História de Portugal (fls. 1-152), o Livro da antiguidade, nobreza, liberdade e imunidade do reino de Portugal (fls. 157-176) e a cópia incompleta da Arte de gramática de lengua castellana d’ Antonio de Nebrija (fls. 273-339).[17]

A transcrição da versão portuguesa de Fernando Oliveira, publicada nos Annaes (tomos IV-XII), está precedida de uma nota introdutória de Cândido Xavier Dias da Silva («Sobre a Traducção dos Livros de Re Rustica de Columella, por Fernão d’ Oliveira»), um dos redactores da publicação periódica, condenado à morte em Portugal e exilado em França desde o final das Guerras Napoleónicas, o qual assina os seus trabalhos apenas com duas iniciais do seu nome (C. X.). Segue-se-lhe uma breve «Notícia» sobre Fernando Oliveira da autoria do próprio transcritor, Francisco José Maria de Brito.


Cândido Xavier, mais tarde sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, é também autor de outros artigos dos Annaes, entre os quais destacamos, pela afinidade temática com o tratado de Columela, a extensa recensão que escreveu sobre uma obra de um outro ilustre redactor e colaborador do periódico: «Resenha Analytica – Georgicas Portuguezas por Luiz da Silva Mouzinho de Albuquerque»[18].

 

Fernando Oliveira, à semelhança de outros humanistas, estava perfeitamente consciente de que a língua materna era um factor essencial à unidade política, porquanto constituía um veículo privilegiado para a transmissão da cultura, da religião e do saber, formando uma comunidade nacional capaz de enfrentar o perigo externo que ameaçava a sua independência e, consequentemente, a sua própria existência. Assim se compreende, por exemplo, a opção inequívoca que toma em defesa da língua, ao compor a primeira gramática da Língua Portuguesa, dada à estampa em 1536[19].


Há muito que se vivia em Portugal uma espécie de batalha linguística entre as línguas portuguesa e castelhana. As intensas e constantes relações entre os reinos ibéricos criaram em Portugal, durante décadas, uma corte bilingue, que potenciou naturalmente o uso do castelhano por alguns dos nossos maiores escritores dos séculos XV e XVI. O meio universitário constituiu um outro factor propiciador deste fenómeno, já que inúmeros alunos e professores portugueses frequentavam as mais reputadas universidades espanholas, das quais Salamanca era, à época, a mais conceituada. Do mesmo modo, eram também chamados a leccionar em Portugal mestres vindos de Espanha. O próprio Fernando Oliveira, convém recordá-lo, passou alguns anos da sua juventude em Espanha, sendo muito provável que tenha prosseguido os seus estudos no país vizinho.


Já vários poetas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, publicado em 1516, haviam composto os seus poemas em português e castelhano, o mesmo acontecendo com nomes consagrados da literatura portuguesa como Gil Vicente, Sá de Miranda, Pêro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes, para não falar de Camões. Outros havia, todavia, que se revelaram defensores acérrimos da Língua Portuguesa como o próprio Fernando Oliveira, António Ferreira, Jerónimo Cardoso, João de Barros, Garcia de Orta ou Samuel Usque.


A versão da obra de Columela para português por Fernando Oliveira enquadra-se também, de certa forma, neste espírito de defesa da língua (e da nação portuguesa), porquanto o tradutor pretende facultar aos seus naturais o contacto directo, na sua própria língua, com uma obra da Antiguidade Clássica, de cuja enorme utilidade para o desenvolvimento da agricultura e da economia nacional parece estar convencido. A ajuizar pelo teor geral das anotações feitas à tradução, Fernando Oliveira não pretende apenas reabilitar as fontes clássicas, como é prática comum entre os humanistas. É que subjaz à sua decisão de verter o tratado agronómico latino a firme convicção de estar a praticar uma missão de grande utilidade para o interesse nacional, tal como tinha feito, no seu tempo, o próprio Columela[20].


Ou porque Fernando Oliveira, entretanto, tivesse morrido, como tem sido proposto por alguns, ou porque, confirmando a irrequietude típica do seu carácter, se tivesse dedicado a outra qualquer tarefa, a sua obra de tradução ficou inacabada. Para português, o autor só verteu o prólogo e o 1.º livro (um caderno de 34 fls.: 177-210), o 2.º livro (um caderno de 44 fls.: 211-254) e o 3.º livro, mas só até ao começo do capítulo IX (um caderno de 18 fls.: 255-272). Nesta versão, de importância inquestionável pela sua riqueza filológica, científica e cultural, são particularmente interessantes as anotações, por vezes com uma extensão significativa, que o autor vai intercalando, à guisa de comentário, ao texto de Columela.


 

O primeiro destes comentários situa-se no final do livro II, logo após o capítulo XXII que trata «das obras que se podem fazer nos dias das festas (...), conforme as leys dos sacerdotes gentios, pelos quaes se então governava a religião dos Romanos, tambem gentios» (fl. 250v). Trata-se de um excurso de âmbito catequético, onde o tradutor dá conta, em pormenor, das obrigações e licenças, diferentes das romanas, que deviam ser observadas, nos domingos e festas, pelos que professavam a religião cristã: não executar qualquer tipo de trabalho servil e «ouvir missa na sua freguesia, ou onde poderem, não desprezando o seu sacerdote» (fl. 251v). No sentido, talvez, de acautelar novos problemas com a Inquisição, aquando da publicação da obra, o tradutor contrapõe o que é dito em Columela ao preceituado pelos mandamentos da Santa Madre Igreja, conforme rezam alguns manuais destinados a confessores e a penitentes[21].


Uma das obras mais significativas, neste género, é o Manual de Confessores e Penitentes, reformado e prefaciado pelo teólogo e canonista, Martín de Azpilcueta Navarro, em 1552, pouco antes de Fernando Oliveira ter sido nomeado corrector da imprensa da Universidade de Coimbra.[22] Coube aos impressores João de Barreira e João Álvares[23] a publicação da segunda edição do Manual de Confessores e Penitentes, que integrou, pela primeira vez, as correcções e acrescentos do Doutor Navarro e que viria a ter uma fortuna editorial assinalável.


Convém sublinhar que há uma relação de grande semelhança, em termos de forma e de conteúdo, entre a anotação de Fernando Oliveira e o que está preceituado em alguns capítulos do Manual de Confessores e Penitentes do Doutor Navarro, em particular o cap. XIII, subordinado ao título «Do terceyro mandamento [do Decálogo]. De guardar as festas…» (pp. 113-121), e o cap. XXI «Dos mandamentos da igreja: ouvir missa inteyra aos domingos e festas…» (pp. 332-336)[24]

 

Na sequência deste comentário inicial de Fernando Oliveira, encontra-se uma outra anotação, desta feita de carácter eminentemente filológico, encabeçada pelo título «Aviso para notar neste segundo livro e nos outros onde for necessario» (fl. 252). Trata-se de uma advertência aos eventuais leitores da obra, cuja principal finalidade é aduzir os argumentos que, no juízo do tradutor, justificam a forma como verteu para português o nome de uma medida de sólidos (usada, em particular, para o trigo), «a que Columella e os outros Latinos, na sua lingua, chamão modio» (fl. 252). O «modio latino», nas palavras de Fernando Oliveira, «era medida tam pequena que se dava de reção para hum dia a hum boy ou besta» (fl. 252), ao passo que «os moyos portugueses são medidas grandes ou, para mais certo falar, são numero de medidas, tantas que abastão manter hum homem todo hum anno, e mays que anno» (fl. 252). O comentador demonstra, comparativamente, que o modius latino não corresponde, em termos de capacidade, ao moio português, apesar de a palavra portuguesa ter origem na latina. Por isso, decidiu adoptar o termo ’almude’ para designar a medida original. Eis a forma como Fernando Oliveira justifica a sua opção (fl. 252v):


E, por tanto, não trasladey modio latino em moyo portugues, mas chamolhe almude, por que assy chamão em Aragão a hũa medida de cevada que dão a hum cavalo para comer hum dia, e assy chama Antonio de Nebrixa, bo grammatico, a duodecima parte da fanega castelhana, que he a nossa fanga, pouco mays ou menos. A qual duodecima parte de fanega, nem he alqueyre, nem meyalqueyre, nem quarta, nem ceromil, que são as nossas medidas (...) e nenhũa destas concorda com o modio latino, segundo a interpretação d’ Antonio de Nebrixa, homem douto na lingua latina, que diz que o modio latino he celamim ou almud castelhano, o qual he, como dixe, a duodecima parte da fanega.


Na verdade, a capacidade do moio português (780 a 840 litros) era muito superior à da medida latina da qual herdou a designação (modius: 8,7 a 9,3 litros). Por conseguinte, o uso da palavra ‘moio’ na tradução portuguesa poderia facilmente induzir os leitores em erro. Assim, o tradutor resolve usar o termo ‘almude’, cuja equivalência ao modius latino, não sendo propriamente exacta, já se aproxima pelo menos em termos de ordem de grandeza. De facto, o modius latino tem uma capacidade de 8,7 a 9,3 litros e o almude, na época de Fernando Oliveira, variava entre os 4,6 litros do almude castelhano, valor dado por Nebrija, e os 16,5 a 17,5 litros do almude português. É sensivelmente a meio deste intervalo de variação dos almudes ibéricos que se situa a capacidade do modius romano [25].


É de sublinhar o respeito que Fernando Oliveira manifesta pelo mestre salmantino, Antonio de Nebrija, em cuja autoridade fundamenta a sua opção pelo uso de ‘almude’ como tradução mais adequada para o modius latino. O autor da primeira gramática castelhana, a primeira de uma língua vernácula, havia publicado, em 1510, um discurso proferido no Estudo de Salamanca sobre medidas latinas, ilustrado com inúmeras citações de autores greco-latinos[26]. Julgamos ter sido esta a fonte privilegiada do tradutor português, porquanto Nebrija esclarece, nesse estudo, o sentido exacto do vocábulo latino modius, recorrendo, aliás, à citação de um passo do livro II do próprio tratado de Columela[27]. Evidenciando um notável sentido prático, não repugnou a Fernando Oliveira adoptar um vocábulo, alegadamente da língua castelhana[28], por entender ser a solução mais adequada para resolver o problema, com a seguinte justificação (fl. 252v):


E poys não temos esta medida, nem o nome della, não he inconveniente, mas antes he necessario tomallo donde o ha e dos mays vezinhos, cuja linguagem he quasi como a nossa e communica muntos vocabolos com a nossa.


Segue-se uma terceira nota do tradutor, com o título «Outra addição do trasladador» (fl. 253), cujo objectivo é colmatar uma falha do tratado latino, «por quanto Columella, neste segundo livro, em que trata da sementeyra do pão e legumes, não faz menção de centeo, o qual em Portugal he munto acustumado» (fl. 253). Fernando Oliveira procura complementar os dados fornecidos pelo tratado latino sobre os cereais, em face das características específicas da realidade portuguesa, «por não deyxar os nossos lavradores sem a doutrina nesta parte necessarea» (fl. 253). No sentido de suprir esta lacuna, segue uma metodologia que assenta em três planos complementares: pesquisa de outras fontes documentais («achey em Plinio hũa semente a que elle chama secale», fl. 253), contacto directo com agricultores portugueses conhecedores da matéria, recurso à sua própria experiência pessoal. Ouçamos, nas palavras do tradutor, a enunciação deste processo hermenêutico que configura uma postura verdadeiramente experiencialista (fls. 253-253v):


Estas qualidades que põe Plinio do secale parecem ser as do centeo, e em nenhũa outra semente põe outras que tanto se pareção co elle. Mas, nem ainda assy nos ensina o que nos cumpre, pello que me foy necessario enformarme d’alguns lavradores da nossa terra, homens entendidos e de experiencia, dos quaes soube que o centeo quer terra solta e bem estercada e a sua sementeyra he sempre // temporãa, no mes de Septembro, antes que venhão os frios, e se as terras são frias em Agosto (...). Eu o vy jaa nacido em oyto dias, por andar d’Agosto, na serra do Touro, perto de Lamego.


Como apêndice do capítulo terceiro do livro III, encontra-se a última anotação do gramático português, novamente de pendor filológico, sob o título «Declaração d’algũas palavras deste capitolo terceyro do terceyro livro» (fl. 265v). Desta vez, o tradutor justifica a razão pela qual decidiu preservar na sua versão algumas palavras latinas relativas a moedas e a medidas, começando por afirmar (fl. 265v):


Neste capitolo, ficão certos vocabolos de moedas e medidas, os quaes deyxey na forma da lingua latina, não por falta de vocabolos portugueses, mas por que não respondem precisamente as nossas aas dos Romanos.


Nesta ocasião, ao invés do que fizera em relação à tradução do modius latino, Fernando Oliveira decide manter na sua versão alguns vocábulos latinos relativos a moedas (sestercio, numo, usura semissis) e a medidas (culeo, amphora e urna), discorrendo largamente sobre o valor das moedas e a capacidade das medidas. Sem prejuízo de consultar outros autores clássicos, o filólogo português enuncia, por diversas vezes, a sua fonte principal, ou seja, Guillaume Budé, que era, à época, autor do mais famoso tratado sobre moedas, pesos e medidas latinos (De asse et partibus eius). Recorre, de novo, à sua experiência pessoal no comentário comparativo entre o valor das moedas romanas, francesas (o termo de comparação do humanista francês) e portuguesas. É nesse sentido que volta a dirigir-se directamente aos leitores do seu trabalho (fls. 265v-266):


Por tamto saybão os leytores que sestercio era hũa moeda romana, a qual diz Guilhelme Budeu que valia tanto como dez dinheyros de França, os quais fazem quasi meo vintem de Portugal, por que cada hum dinheyro de França val quasi hum real de Portugal. Digo quasi, por que os reaes de Portugal são algum pouco mayores que os dinheyros de França, tanto que hum real de prata não // val mays que trinta e seys reaes e dous ceytis de Portugal, e dos dinheyros de França val mays de quorenta.


Jerónimo Cardoso, que teceu rasgados elogios a Fernando Oliveira, numa das suas epístolas latinas[29], é também autor de um pequeno tratado sobre moedas gregas e latinas, pesos e medidas, publicado em Coimbra, em 1561, nos prelos de João Álvares[30]. Coubera a este mesmo impressor, como é sabido, dar à estampa a segunda e última obra publicada em vida de Fernando Oliveira, ou seja, a Arte da Guerra do Mar, em 1555, pouco depois de o egresso dominicano ter sido nomeado corrector da imprensa da Universidade de Coimbra, a 18 de Dezembro de 1554. Nas palavras de Justino Mendes de Almeida[31], a referida obra do humanista de Lamego, terra em que o nosso autor, curiosamente, confessa ter visto os campos de centeio, «é uma espécie de sumário, à maneira de anacefaleose, da matéria contida no tratado do grande humanista francês Guillaume Budé (Gulielmus Budaeus): Libri V de asse et partibus eius (1514)», tendo sido posteriormente incluído no Dictionarium Latinolusitanicum.


A extraordinária mundividência de Fernando Oliveira concedia-lhe, evidentemente, um conhecimento apurado que lhe permitia relacionar, com relativa facilidade, o valor das moedas latinas, francesas e portuguesas ou a capacidade das medidas de vários países. Convém não esquecer que o humanista aveirense é filho de um tempo novo em que a aritmética adquire uma importância cada vez maior na descrição do real[32]. Não será demais recordar, por exemplo, que o cristão-novo João Fernandes, o livreiro mercador, em cuja loja Fernando Oliveira foi interpelado pelo seu inimigo João de Borgonha[33], patrocinou a segunda edição do primeiro e mais famoso tratado quinhentista português de aritmética, publicado em Lisboa, em 1530, da autoria de Gaspar Nicolás (Tratado da Prática d’Arismética. Lisboa, Germão Galharde, 1530).

 

Mesmo inacabado, este exercício de versão para português do tratado agrícola de Columela (o primeiro na Península Ibérica) revela-nos um autor ciente de que o seu trabalho, com esclarecimentos práticos e utilitários, seria de enorme proveito para a agricultura nacional, votada ao abandono, em consequência do recrudescimento do comércio marítimo. A sua preocupação com a exactidão e clareza da matéria, em que se cruzam, de modo fecundo, os dados fornecidos pelas fontes antigas e modernas e pela própria experiência pessoal, é disso prova evidente. E tal preocupação define uma nova atitude perante o saber, característica do humanismo português, de que o autor é, sem dúvida, um dos mais lídimos representantes.

  


NOTAS

[1]Este trabalho, não obstante ter sido ampliado e enriquecido com novos dados, resulta de uma conferência, com o mesmo título, proferida no Colóquio «Fernão de Oliveira (c. 1507 – c. 1582): Modelo de Sábio Humanista», que teve lugar na Sociedade de Geografia de Lisboa, no dia 14 de Dezembro de 2007.

[2] Cf. Antonio FONTÁN, «Escritores hispanos en el siglo de Columela»: José María MAESTRE MAESTRE – Luis CHARLO BREA – Antonio SERRANO CUETO (eds.), Estudios sobre Columela. Cádiz, Ayuntamiente de Cádiz – Cátedra Municipal de Cultura "Adolfo de Castro" – Servicio de Publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1997, p. 24. Embora seja difícil aferir o grau de adesão de Columela ao estoicismo, convém notar que algumas das suas posições ideológicas estão bastante próximas das doutrinas de Séneca. É disso exemplo o trato humanitário dos escravos que Columela defende e afirma praticar (Sen. Ben. 3.21.1). A este respeito, deve sublinhar-se a visão crítica que Fernando Oliveira manifesta sobre a escravatura no seu tempo. Cf. Fernando OLIVEIRA, Arte da Guerra do Mar. Lisboa, Ministério da Marinha, 1969, pp. 24-25.

[3] Col. 9.16.2; 10, Praef. 3-4.

[4] Verg. G. 4.147-148.

[5] Sobre as manifestações da poesia didáctica no século I d. C., de que o livro X do tratado de Columela é um exemplo, cf. António Manuel L. ANDRADE, «A poesia didáctica no século I d. C.: manifestações de um género literário»: Aires A. NASCIMENTO (coordenação editorial), De Augusto a Adriano. Actas de Colóquio de Literatura Latina (Lisboa, 2000. Novembro. 29-30). Lisboa, Euphrosyne – Centro de Estudos Clássicos, 2002, pp. 25-32.

[6] Cf. Jesús LUQUE MORENO, «Columela, poeta y científico: el libro X del tratado de agricultura»: José María MAESTRE MAESTRE – Luis CHARLO BREA – Antonio SERRANO CUETO (eds.), op. cit., p. 116.

[7] Servimo-nos da apresentação de Moses Bensabat AMZALAK, Columela e a Economia Agrícola. Lisboa, Academia das Ciências – Biblioteca de Altos Estudos, 1953, p. 10. Nesta mesma obra, encontra-se uma descrição pormenorizada do conteúdo dos vários capítulos de cada um dos livros do tratado, cf. «Plano e conteúdo do livro "De re rustica" de Columela», pp. 41-50.

[8] Para uma análise criteriosa da história dos manuscritos e das edições do tratado de Columela, cf. José María MAESTRE MAESTRE, «Columela y los Humanistas»: José María MAESTRE MAESTRE – Luis CHARLO BREA – Antonio SERRANO CUETO (eds.), op. cit., pp. 263-309. Fizemos uso da listagem das edições do tratado que figura na página 267 do estudo supracitado, compreendendo o período que vai desde a editio princeps, em 1472, até finais do século XVIII.

[9] José María MAESTRE MAESTRE, «Columela y los Humanistas»: op. cit., pp. 309-312, apresenta uma relação das principais traduções do tratado columeliano para as línguas modernas. Note-se, porém, que não refere as traduções parciais de Louis Meigret e de Fernando Oliveira.

[10] Le tiers & quatriesme liures de Lucius Moderatus Columella, touchant le labour, traduictz de langue latine en francoyse par Loys Megret. Paris, Denis Ianot, [1542]. Veja-se a descrição bibliográfica pormenorizada desta obra, da qual se conhecem apenas dois exemplares à guarda da Biblioteca Municipal de Lyon e da Bristish Library, publicada por Franz Josef Hausmann, no seu estudo Louis Meigret, humaniste et linguiste. Tübingen, Narr, 1980, pp. 250-251.

[11] Le tretté de la grammere françoeze. Paris, Chés Chrestian Wechel, 1550. A gramática teve uma edição moderna estabelecida por Franz Josef Hausmann (Louis Meigret, Le traité de la grammaire française (1550). Tübingen, Narr, 1980).

[12] A obra de Franz Josef Hausmann, Louis Meigret, humaniste et linguiste, op. cit., continua a ser o estudo de referência sobre a vida e obra do humanista de Lião.

[13] Sobre a presença de Columela em Espanha, veja-se o importante trabalho de José Ignacio GARCÍA ALMENDÁRIZ, Agronomía y tradición clásica: Columela en España. Sevilla, Universidad de Sevilla–Universidad de Cádiz, 1995.

[14] Eduardo FRANCO, O mito de Portugal: a primeira História de Portugal e a sua função política. Lisboa, Roma Editora – Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d’Orey, 2000, pp. 69-70.

[15] Os redactores desta revista de pendor científico, com periodicidade trimestral, do qual saíram ao todo 16 tomos, entre 1818 e 1822, foram Francisco Solano Constâncio, José Diogo de Mascarenhas Neto, Cândido José Xavier da Silva e Luís da Silva Mousinho de Albuquerque. Cf. Fátima NUNES, "Notas para o estudo do periodismo científico em Portugal: «Annaes das Sciencias das Artes e das Letras» (1818-1822)’’, Cultura, História e Filosofia 6 (1987), pp. 661-682.

[16] A transcrição integral da versão portuguesa de Fernando Oliveira foi publicada, por partes, nos vols. IV-XII do periódico Annaes das Sciencias, das Artes, e das Letras (Paris, 1819-1821).

[17] O códice foi descrito por Paul Teyssier, «L’Historia de Portugal de Fernando Oliveira d’après le manuscrit de la Bibliothèque Nationale de Paris»: Actas do III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, vol. I. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1959, pp. 360-362. Mais recentemente a história deste códice, em particular no que concerne à versão do humanista português, foi objecto de um estudo de Ana Maria S. TARRÍO, intitulado «La sombra protectora del cardenal Mazarino. Sobre la fortuna manuscrita de la traducción de Columela de Fernando Oliveira»: Maria das Graças Moreira de SÁ , Isabel ALMEIDA e Cristina SOBRAL (coords.), Magnum Miraculum est Homo. José Vitorino de Pina Martins e o Humanismo. Lisboa, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, 2008, pp. 83-93.

[18] Annaes das Sciencias, das Artes, e das Letras, tomo IX, parte I, (Paris 1820), pp. 3-25. Mousinho de Albuquerque publicou as Geórgicas Portuguesas, em Paris, no ano de 1820, dedicando-as à sua mulher, filha do próprio fundador dos Annaes, o desembargador José Diogo de Mascarenhas Neto, também exilado em Paris. Entre 1821 e 1822, Mousinho de Albuquerque publicou na revista vários artigos sobre agricultura portuguesa e indústria.

[19] Fernão de OLIVEIRA, Gramática da Linguagem Portuguesa (1536). Edição crítica, semidiplomática e anastática por Amadeu Torres e Carlos Assunção com um estudo introdutório do Prof. Eugénio Coseriu. Lisboa, Academia das Ciências de Lisboa, 2000.

[20] Sobre as prováveis motivações que levaram Fernando Oliveira a traduzir o tratado de Columela, cf. Ana Maria S. TARRÍO, «Construcción naval y ‘materia rústica’. La traducción de Columela de Fernando Oliveira (BnF, Fond Portugais, n.º 12, fols. 147-272)»: Cuadernos de Estudios Borjanos 50-51 (2007-2008), pp. 171-195.

[21] Sobre a natureza e os objectivos deste tipo de literatura parenética, cf. Maria de Lurdes C. FERNANDES, «Do manual de confessores ao guia de penitentes. Orientações e caminhos da confissão no Portugal pós-Trento»: Via Spiritus 2 (1995), 47-65.

[22] A primeira edição desta obra, atribuída comummente a Frei Rodrigo do Porto, foi publicada em Coimbra, em 1549, nos prelos de João Álvares. Sobre as sucessivas adaptações, traduções e edições deste manual, nomeadamente as da autoria de Martín Azpilcueta Navarro, cf. A. Pereira da SILVA, «A primeira suma portuguesa de teologia moral e a sua relação com o «Manual» de Navarro»: Didaskalia 5 (1975), 355-403.

[23] Note-se que foi o mesmo João Álvares que deu à estampa, em Coimbra, a segunda e última obra publicada em vida de Fernando Oliveira, ou seja, a Arte da Guerra do Mar, em 1555.

[24] Para fazer o cotejo com o texto de Fernando de Oliveira, servimo-nos das edições conimbricenses de 1552 (Manual de Confessores e Penitentes. In inclyta Conimbrica, Ioannes Barrerius et Ioannes Alvarez excudebat, 1552) e de 1560 (Manual de Confessores e Penitentes. Impresso em Coimbra, por Ioam de Barreyra, 1560). Citamos pela edição de 1560, da qual há duas reproduções digitais, uma na Biblioteca Nacional de Portugal, outra na Biblioteca Digital da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

[25] Segundo Antonio de Nebrija, nas palavras de Fernando Oliveira, 1 módio latino = 1 celamin castelhano = 1 almude castelhano = 1/12 fanega castelhana (=4,6 litros). Estamos gratos ao Prof. Luís Seabra Lopes pelo auxílio que nos prestou no esclarecimento das relações estabelecidas pelo tradutor entre a capacidade das medidas castelhanas e portuguesas. Remetemos os interessados nesta matéria para os estudos de Luís Seabra LOPES, «Sistemas Legais de Medidas de Peso e Capacidade, do Condado Portucalense ao Século XVI»: Portugalia, Nova Série, 24 (2003), pp. 113-164; «A Cultura da Medição em Portugal ao longo da História»: Educação e Matemática 84 (Setembro-Outubro 2005), pp. 42-48.

[26] Elio Antonio de NEBRIJA, Repetición sexta sobre las medidas. Introducción, traducción y notas de Jenaro Costas Rodríguez. Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1981.

[27] Sobre os ecos de Columela na obra de Nebrija, cf. Gregorio HINOJO ANDRÉS, «Reminiscencias de Columela en Nebrija»: Excerpta Philologica 1 (1991), pp. 333-342.

[28] A justificação apresentada por Fernando Oliveira é simplesmente inexplicável, dado que o ‘almude’ existiu em Portugal, desde época anterior à fundação da nacionalidade, e manteve-se em utilização constante ao longo dos séculos. Foi, aliás, umas das principais medidas em Portugal, a par do alqueire e do moio, e fazia parte do sistema legal português no tempo do tradutor.

[29] Referimo-nos à epístola de «Hieron. Cardosus Ferdinando Oliuerio suo S. P. D.» publicada em Epistolarium Familiarium Libellum. Olysipone, apud Ioannem Barrerium, 1556, pp. 29-30. A referida carta foi editada e traduzida, em primeiro lugar por Henrique Lopes de MENDONÇA, O Padre Fernando Oliveira e a sua obra Náutica. Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1898, pp. 71-72 e 143-144; e, mais recentemente, por Telmo Corujo dos REIS, Jerónimo CARDOSO, Obra Literária. Tomo I. Prosa Latina. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009 (Portugaliae Monumenta Neolatina, vol. VII), pp. 178-181.

[30] Jerónimo CARDOSO, De monetis tam Graecis quam Latinis. Item de ponderibus et mensuris ad praesentem usum redactis, anacephalaeosis. Conimbricae, apud Ioannem Aluarum Typographum Regium, 1561. Esta obra acaba de ser reeditada e traduzida por Telmo Corujo dos REIS em Jerónimo CARDOSO, Obra Literária. Tomo II. Poesia Latina. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2009 (Portugaliae Monumenta Neolatina, vol. VIII), pp. 82-105.

[31] Citamos uma afirmação deste investigador publicada na sua introdução da obra Jerónimo CARDOSO, Oração de Sapiência Proferida em Louvor de todas as Disciplinas, reprodução fac-similada da edição de 1550, trad. De Miguel Pinto de Meneses e introd. de Justino Mendes de Almeida. Lisboa, Instituto de Alta Cultura – Centro de Estudos de Psicologia e de História da Filosofia anexo à Faculdade de Letras de Lisboa, 1965, p. 7.

[32] Cf. A. A. Marques de Almeida, A Aritmética como Descrição do Real (1519-1679). Lisboa, Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994, 2 vols.

[33] No calor desta altercação com o também livreiro Luís de Borgonha, Fernando Oliveira veio a terreiro em defesa de Henrique VIII, o que lhe havia de valer um processo inquisitorial, na sequência do qual foi preso e sentenciado em auto-de-fé, em Setembro de 1548 (IAN-TT, Inquisição de Lisboa, Proc. 12099). Veja-se a transcrição integral do feito-crime de Fernando Oliveira publicada por Henrique Lopes de MENDONÇA, op. cit., pp. 99-128.


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A FÁBULA NA OBRA POÉTICA DE DIOGO PIRES

A FÁBULA NA OBRA POÉTICA DE DIOGO PIRES

António Manuel Lopes Andrade

Universidade de Aveiro

 

Diogo Pires encontra-se, com inteira justiça, entre os mais talentosos poetas novilatinos do século XVI. O humanista eborense, membro de uma destacada família de origem judaica, os Pires-Cohen, muito cedo deu provas do seu enorme talento enquanto poeta ao publicar – estava prestes a celebrar o seu vigésimo aniversário – várias composições em língua grega e latina num volume de homenagem a Erasmo, cuja edição esteve a cargo do notável humanista e impressor Rogério Réscio, poucos meses após a morte do Roterodamês[1]. Assim, no mês de Março de 1537, Diogo Pires assistia ao reconhecimento dos seus dotes poéticos, ao ver publicados vários epitáfios de sua autoria nesta obra colectiva em que participaram alguns dos mais consagrados humanistas da época, muitos deles ligados aos círculos erasmistas de Lovaina, entre os quais se contam André de Resende, Clenardo, H. Froben, Jean Morel, Juan Luis Vives, Petrus Nannius, S. Grynaeus ou Cornelius Graphaeus.

O humanista português percorreu um longo caminho, desde que saiu de Lisboa, em 1535, rumo a Antuérpia, até chegar a Dubrovnik, onde acabou os seus dias em finais do século. Ao longo da sua vida atribulada, porém, nunca deixou de se devotar, com maior ou menor intensidade, a duas actividades tão queridas de vários daqueles humanistas que com ele contribuíram para o volume publicado em memória de Erasmo: a poesia e o magistério.

A relação privilegiada entre o poeta e o educador ultrapassa, algumas vezes, o próprio contexto específico da criação poética, já que alguns poetas exercem igualmente uma actividade pedagógica, assumindo assim, a um só tempo, a condição efectiva de poetas e professores. Esta realidade não era desconhecida do mundo greco-latino, onde basta citar o exemplo paradigmático do poeta e mestre-escola que é considerado, comummente, o primeiro autor da literatura latina: Lívio Andronico.

O exercício da actividade pedagógico-didáctica constituía uma prática bastante comum entre os humanistas, que lhe concediam, regra geral, um valor inestimável no quadro dos valores e dos objectivos por que regiam as suas vidas. Não é raro, por isso, encontrar entre eles lídimos seguidores desta antiga tradição em que poeta e professor se confundem na mesma pessoa.

O próprio Diogo Pires oferece um bom exemplo desta realidade, porquanto são assaz conhecidas as suas qualidades excepcionais como poeta e pedagogo, evidenciadas durante a sua permanência tanto na Flandres, como em Ferrara, mas sobretudo nas várias décadas que viveu em Dubrovnik. Desta frutuosa união entre a poesia e o ensino havia de nascer uma espécie de projecto de vida que culminou com a publicação, em duas edições venezianas, daquela que pode ser justamente considerada a obra-prima de Diogo Pires: uma extensa colectânea poética, em língua latina, que ostenta o sugestivo título Cato Minor siue Disticha Moralia[2]. Trata-se de um livro que integra uma grande variedade de composições escritas em diferentes fases da vida do autor, não obstante haver uma manifesta intenção pedagógico-didáctica subjacente a uma parte substancial dos capítulos que compõem a obra[3].

Na verdade, a colectânea acabou por ser dedicada aos mestres-escola da cidade de Lisboa, ainda que os destinatários últimos dos poemas fossem, como é fácil de ver, os jovens alunos que os Ludimagistri Vlissiponenses iniciavam no estudo das primeiras letras e conceitos de conduta moral. O Cato Minor nasce verdadeiramente sob o signo da pedagogia, porque o núcleo inaugural da obra – os Disticha Moralia – integra um conjunto de dísticos morais compostos especificamente para a educação da juventude, à imagem da célebre colectânea dos Disticha Catonis. A declarada intenção didáctica, que subjaz a esta parte inicial do Cato Minor, percorre um pouco toda a obra, se bem que se acentue, em particular, no referido grupo inaugural dos Disticha Moralia e nos Carmina Moralia, que constituem a sua continuação directa e a parte mais extensa e heterogénea do livro.

 

A concepção geral da obra de Diogo Pires resulta, em grande medida, da sua experiência como professor particular de jovens alunos, tantas vezes nomeados e invocados directamente em composições dispersas por vários capítulos da colectânea. O humanista português dedica o Cato Minor siue Disticha Moralia aos Ludimagistri Olyssiponenses, por entender seguramente que os seus poemas constituíam um instrumento pedagógico-didáctico passível de ser utilizado com proveito pelos professores que ministravam, a um nível inicial, a formação linguística e moral aos jovens lusitanos.

No fundo, Diogo Pires dá continuidade à antiga prática do γραμματιστής / γραμματοδιδάσκαλος / ludi magister / litterator[4], no mundo greco-romano. Sob a orientação do mestre, os alunos aprendiam a ler e a escrever através de exercícios bastante simples que começavam com as letras, passando pelas sílabas, pelas palavras isoladas, até chegar às frases simples e aos textos já com relativa complexidade[5]. O professor, porém, não se limitava apenas a ensinar as crianças a ler e a escrever, já que procurava, em simultâneo, incutir no espírito dos seus jovens discípulos normas de comportamento e de conduta que lhes pudessem servir de guia durante a vida.

Esta formação de carácter ético era ministrada, em grande medida, através do recurso a determinados textos poéticos que eram utilizados como instrumentos pedagógico-‑didácticos desde os primeiros anos de escolaridade. Assim se compreende que, com vista à realização integral deste objectivo, Quintiliano recomende que os jovens nos primeiros anos de escolaridade memorizem versos que contribuam, tanto para a sua formação ético-moral, como para a sua instrução linguística básica[6].

Após terem exercitado a leitura e a escrita de palavras isoladas, os alunos passavam à leitura de pequenas frases, que eram geralmente versos retirados de vários géneros, em particular da poesia épica, didáctica e dramática. O critério principal que presidia à escolha destes versos era o seu valor moral e sentencioso, pois deviam expressar, de forma sucinta e inequívoca, normas de vida e de conduta que os jovens gravariam para sempre na sua memória. Estas máximas morais serviam, adequada e eficazmente, os objectivos do professor que assim lograva que os seus alunos desenvolvessem, a um só tempo, a sua formação ética e linguística.

 

A fábula reunia também características muito particulares que a tornavam um dos textos mais apropriados e eficazes para levar à prática esta pedagogia. Foi, por essa razão, adoptada na escola antiga, desde tempos recuados, com uma marcada intenção educativa, tanto na esfera da dimensão moral, como na da puramente linguística[7].

Diogo Pires não enjeitou, ele próprio, as virtualidades oferecidas pela antiga tradição fabulística, reservando algum espaço na sua colectânea poética a este género literário, seja pela composição propriamente dita de algumas fábulas, seja pela simples alusão a outras nos disticha moralia[8]. Procurar-se-á, de seguida, apresentar e analisar este interessante conjunto de poemas que fazem parte, na sua totalidade, da obra Cato Minor siue Disticha Moralia.

 

A fábula tem uma finalidade eminentemente didáctica e moralizante, pelo que não é de estranhar que haja entre os dísticos morais do Cato Minor duas composições, cujo conteúdo remete, de forma inequívoca, para dois conhecidos apólogos de origem esópica. A inclusão destes dísticos entre os textos da colectânea proporcionaria decerto ao mestre uma excelente oportunidade de dar a conhecer aos jovens discípulos, nas suas linhas fundamentais, o conteúdo das fábulas originais, preparando desde logo uma futura exploração desses textos do ponto de vista temático e gramatical.

O primeiro dístico refere-se explicitamente à fábula de Esopo em que dois potes, um de barro e outro de cobre, são arrastados pela corrente de um rio[9]. O pote de barro dirige-se ao companheiro, pedindo-lhe que nade longe de si, para não se quebrar em resultado de um eventual contacto, mesmo que involuntário, entre ambos. O poeta eborense considera perfeitamente justificada a atitude do pote de barro, porquanto a moralidade da fábula grega diz que a vida não é segura para um pobre que tem por vizinho um príncipe rapace:

Fabula non uana est Aesopi: fictilis urna,

aerea quam tulerat sponte, recusat opem.[10]

Não é vã a fábula de Esopo: o pote de barro

recusa o auxílio que de boa vontade recebera do de cobre.

O segundo dístico moral remete o leitor para a mais antiga fábula latina, de origem esópica (a calhandra e os seus filhotes no campo de trigo), composta em verso por Énio, nas Saturae, e transmitida, com grande pormenor, por Aulo Gélio[11]. A calhandra avisada apenas toma a decisão de abandonar o campo de trigo em que vivia com os seus filhotes na última oportunidade, quando o dono da terra, cansado de esperar em vão pela ajuda prometida de amigos e parentes, decide ele próprio, em conjunto com o filho, ceifar o campo de trigo. O poema do humanista eborense sintetiza muito bem a lição da fábula latina, que a todos adverte dos perigos em que incorre quem se fia na ajuda de amigos ou parentes e não faz o que lhe compete:

Insanit si quis quemquam sibi credit amicum,

ut bene Cassitae fabula prisca docet.[12]

É louco quem se fia em algum amigo,

como bem ensina a antiga fábula da calhandra.

No entanto, o tratamento da fábula por parte de Diogo Pires nem sempre se circunscreve a textos com uma simplicidade comparável à dos dois dísticos morais acabados de apresentar. Com efeito, é possível rastrear na colectânea poética algumas composições, todas elas em verso, marcadas já por uma complexidade e riqueza bem maiores, que constituem verdadeiros exemplos de fábulas no respeito pleno pelas características técnico-formais do género.

O poema intitulado Ex Aesopo Hispano constitui um interessante exemplo de recriação de uma fábula, uma vez que se encontra estruturado a partir de um texto matricial, cuja identificação com a fábula de Esopo «Γεωργὸς καὶ ὄφις <τὸν παῖδα αὐτοῦ ἀποκτείνας>» não oferece a menor dúvida. No sentido de tornar mais simples o cotejo entre a fábula de Esopo e a de Diogo Pires, apresentam-se de seguida os dois textos originais, acompanhados da respectiva versão para língua portuguesa:

Γεωργὸς καὶ ὄφις <τὸν παῖδα αὐτοῦ ἀποκτείνας>

Γεωργοῦ παῖδα ὄφις ἑρπύσας ἀπέκτεινεν. Ὁ δὲ ἐπὶ τούτῳ δεινοπαθήσας πέλεκυν ἀνέλαβε καὶ παραγενόμενος εἰς τὸν φωλεὸν αὐτοῦ εἱστήκει παρατηρούμενος, ὅπως, ἂν ἐξίῃ, εὐθέως αὐτὸν πατάξῃ. Παρακύψαντος δὲ τοῦ ὄφεως, κατενεγκὼν τὸν πέλεκυν, τοῦ μὲν διήμαρτε, τὴν δὲ παρακειμένην πέτραν διέκοψεν. Εὐλαβηθεὶς δὲ ὕστερον παρεκάλει αὐτὸν ὅπως αὐτῷ διαλλαγῇ. Ὁ δὲ εἶπεν· «Ἀλλ᾿ οὔτε ἐγὼ δύναμαί σοι εὐνοῆσαι, ὁρῶν τὴν κεχαραγμένην πέτραν, οὔτε σὺ ἐμοί, ἀποβλέπων εἰς τὸν τοῦ παιδὸς τάφον.»

Ὁ λόγος δηλοῖ ὅτι αἱ μεγάλαι ἔχθραι οὐ ῥᾳδίως τὰς καταλλαγὰς ἔχουσι.[13]

O lavrador e a serpente que lhe matou o filho

Uma serpente, aproximando-se a rastejar do filho de um lavrador, matou-o. O lavrador sentiu uma dor terrível e, munindo-se de um machado, pôs-se de guarda junto ao ninho da serpente, disposto a matá-la, assim que ela saísse. Mal a serpente pôs a cabeça de fora, o lavrador desferiu um golpe, mas falhou, partindo em duas uma pedra próxima. Temendo a vingança da serpente, dispôs-se a reconciliar-se com ela, mas esta logo respondeu: «Nem eu posso alimentar bons sentimentos por ti, quando vejo a pedra partida, nem tu por mim, quando contemplas o túmulo do teu filho».

Esta fábula ensina que os grandes ódios não se prestam nunca a reconciliações.

EX AESOPO HISPANO

Filius agricolae periit demorsus ab hydro,

dum puer ad Durii flumina pascit oues.

Accurrit pater infelix, contorquet et hastam.

Illa uolat; colubro cauda resecta iacet.

Infert se medium pastor uicinus et ultro

orat amicitiae foedus inire uelint.

Efferus huic contra serpens: «Ni, stulte, facessis,

quid ualeant dentes, experiere, mei!

Num modus aut odio finis, cum mente recursent,

huic puer ereptus, cauda recisa mihi?»

Fabulat significat post uulnera et caedes raro amicitias coire.[14]

Do Esopo hispânico

O filho de um lavrador sucumbe, mordido por uma cobra,

enquanto, ainda criança, apascenta ovelhas junto ao rio Douro.

Acorre o pobre pai e brande uma lança.

Aquela vai pelo ar; a cauda da serpente jaz cortada.

Põe-se no meio um pastor da vizinhança e, além disso,

pede que eles selem um pacto de amizade.

A este, disse-lhe a serpente em resposta: «Se não te afastas, ó imbecil,

vais experimentar do que são capazes os meus dentes!

Porventura o ódio tem um limite ou um fim, quando está sempre a vir à mente,

a este, o jovem morto, a mim, a cauda cortada?».

A fábula mostra que depois de feridas e mortes raras vezes se fazem amizades.

Convém sublinhar que o poeta eborense, embora tenha respeitado, em traços gerais, a narrativa de Esopo, concedendo-lhe forma poética (dístico elegíaco[15]), procedeu a algumas alterações em relação ao modelo grego, como o próprio título que atribuiu à fábula deixa, desde logo, perceber. Assim se compreende, por exemplo, a menção concreta da localização geográfica em que decorre a acção, ou seja, ad Durii flumina. Uma pequena alteração concede um realismo muito maior ao relato da fábula latina: em Esopo, o lavrador tenta matar a serpente mas, ao falhar o golpe, fende uma rocha em duas; em Diogo Pires, o lavrador não logra, de igual modo, matar a serpente, mas ainda consegue cortar-lhe a cauda. Ora, este pormenor assume uma grande importância na última frase da serpente, porque a lembrança da cauda cortada será decerto muito mais forte do que a da rocha fendida em duas. Agora, tanto o lavrador como a serpente têm na sua lembrança algo que lhes pertencia, antes de lhes ter sido retirado à força: o filho e a cauda. Além disso, introduz-se uma nova figura, inexistente no texto original, o pastor uicinus, que se dirige à serpente, para propor um acordo de paz entre ela e o lavrador. Ao invés, em Esopo, é o próprio lavrador que toma essa iniciativa, com medo de eventuais represálias da serpente, após a sua frustrada tentativa de a matar. Diga-se, por último, que a fala da serpente incorpora de modo inovador, no poema latino, o motivo da ameaça de morte, que não tem lugar no modelo grego.

As fábulas mais originais do humanista português não seguem de perto um único modelo, como acontece com a composição Ex Aesopo Hispano que é, a este respeito, caso único. Na verdade, as composições que adiante se apresentam conjugam, com grande mestria e liberdade, motivos vários provenientes da tradição fabulística greco-latina ou mesmo de outra origem, nem sempre fácil de determinar. As duas composições a que nos referimos encontram-se no final do primeiro capítulo do Cato Minor (na edição de 1596), em jeito de remate dos três livros de dísticos morais.

Os Disticha Moralia Libri Tres terminam, efectivamente, com duas fábulas seguidas de argumento bastante original, que não deixam, evidentemente, de ter como matriz alguns textos modelares dos mais celebrados fabulistas greco-latinos, ou seja, Esopo e Fedro. A fábula tem um pendor eminentemente didáctico e moralizante, pelo que não é de estranhar que o poeta acrescentasse no final dos dísticos morais alguns poemas deste género tão do agrado dos mais novos. O primeiro poema tem por título muito simplesmente a palavra Fabula[16] e relata, em hexâmetros dactílicos, a história do leão que, no julgamento, é rei, juiz e testemunha ao mesmo tempo:

FABVLA

Fabellam narrare libet nec seria semper

delectare solent. Est et sua gratia nugis

apte compositis. Occidi iusserat olim

Rex Leo, quotquot erant omnes a stirpe camelos.

Indignum facinus! Verum lex Regia uox est

nec tutum differre, iubet quodcumque Tyrannus.

Ignescunt animi et ferro mora plectitur omnis.

Ergo ubi per terras uulgata est fama nouumque

audiit edictum uulpes, expalluit amens

et loca tuta fugae quaerit. Timor undique mortis

atque oculos Leo crudelis uersatur ob ipsos.

Huic cornix, celsa dum pendet ab ilice, «Nulla est

causa timoris», ait, «nec enim te Bactria misit

deformem gibba et protenso in pectora collo,

nec patiens oneris dorsum geris. Ergo canum uim

aut hominum potius casses et retia uites.»

Illa autem caelum aspiciens: «Pol», inquit, «inepta es,

o Soror, aut potius nugatrix garrula! Quae me,

quae te consilio, quaeque annis praeeo, regum

leges, et rescripta iubes addiscere? Num si

aptet clitellas, et dixerit, «Esto camela»,

Rex tibi, Rex idem et iudex, et testis, abibis

iudicio incolumis causamque tuebere uerbis

rhetoricum in morem? Felix, quod in aere degis,

sin minus, his mecum latebris inclusa iaceres.»

Fabula significat regibus de medio tollendi quos uelint causas nunquam deesse.[17]

FÁBULA

Apraz-me contar uma fábula, mas as histórias sérias

nem sempre costumam agradar. E até as bagatelas

bem escritas têm a sua graça. Um dia, o rei Leão

tinha mandado matar quantos camelos havia, de uma ponta a outra.

Crime vergonhoso! Mas palavra de Rei é lei

e não é seguro retardar seja o que for que o tirano ordene.

Incendeiam-se os espíritos e pune-se com a espada qualquer demora.

Por isso, mal a notícia se espalhou por toda a parte e a Raposa

ouviu falar da nova ordem, desorientada, teve medo de morrer

e procurou fugir para um lugar seguro. O temor da morte está por toda a parte

e o Leão cruel aparece diante dos seus próprios olhos.

Uma gralha, suspensa do alto de uma azinheira, diz-lhe:

«Não há razão para teres medo, pois nem a Bactra te fez andar

disforme com uma bossa e com o pescoço curvado sobre o peito,

nem andas a suportar carga no dorso. Por isso, deves antes evitar

a força dos cães ou os laços e as redes dos homens».

Ela, porém, voltando-se para o céu, disse: «Com os diabos, ó irmã,

tu és louca ou então uma palradora sem-vergonha! A mim,

que sou mais avançada que tu em juízo e em idade, que leis

dos reis e que preceitos é que me estás a mandar aprender?

Porventura se o Rei te puser uma albarda, e o Rei, ele mesmo juiz

e testemunha, te tiver dito «Sê uma camela», sairás

intacta do julgamento, depois de teres defendido a tua causa

com palavras de retórica? És feliz porque vives no ar,

quando não, estarias comigo escondida nesta toca».

A fábula significa que nunca faltam razões aos reis para matarem quem eles querem.

A fábula ilustra o poder discricionário de que dispõem os monarcas, a ponto de forjarem motivos para ordenarem a morte de quem muito bem entendem. No fundo, a animada troca de razões entre a gralha e a raposa, na sequência da ordem do leão para mandar matar, sem razão aparente, todos os camelos da terra, ilustra na perfeição esta dura realidade e dá o tom a esta curiosa fábula política, que põe em evidência a natureza e o poder sem limites do rei-leão. Este poema não é uma mera tradução de uma qualquer fábula greco-latina, apesar de ser possível rastrear alguns motivos já conhecidos, como o tema da societas leonina[18] ou a conclusão lapidar da raposa que diz à gralha que a felicidade dela se deve ao simples facto de estar a salvo por viver no ar, fora do alcance das garras do rei[19]. Trata-se, de facto, de uma fábula muito original e inovadora, mesmo na disposição dada aos motivos tradicionais, de grande perfeição técnico-formal, que demonstra as enormes virtualidades do poeta eborense.

A segunda fábula intitula-se Alia ad Benessum causarum patronum[20] e está endereçada a Simon Benečić, notável jurista e governante de Ragusa[21]. Compõe-se de 12 dísticos (pitiâmbico I), em que o hexâmetro dactílico alterna com o dímetro iâmbico. Este poema volta a ter como figura principal o rei-leão, desta feita para demonstrar o quão insanos são aqueles que confiam a sua vida à protecção dos tiranos. O argumento assenta na célebre história do leão e do burro, na qual este se aproxima do leão doente, confiando estultamente nas suas palavras, pelo que acaba por pagar com a vida tamanha imprudência:

ALIA AD BENESSVM CAVSARVM PATRONVM

Si ridere libet, pulsant neque tecta clientes,

audi, Benesse, fabulam

argutam et multi plenam salis. Iuit asellus

olim leonis in specum

officii causa, regem uisurus et aegrum.

Is perlibenter hospitem

Fingit se uidisse, et ait: «Dulcissime rerum

et iure dilectum caput,

gratum est, quod saluus uenisti. Accede meamque

agnosce regiam fidem.

Digna feres uirtute tua». Submissior ille

de more gratias agit.

Rudit et insuetum caudaque adludit amice,

heu sortis ignarus suae!

Nam cadit impressus uiolentis unguibus artus,

atroque sparsus sanguine,

foedat humum. Capitis leo dissecat ossa, medullam

hinc inde quaerens abditam.

At procul e tumulo uulpes «Heus», inquit, «inepte!

Quicumque regis impia

tecta petunt, illis cerebrum Deus eximit omne.

Frustra innocentis belluae

optatam quaeris praedam. Rode ossa, subibis

tu forsan exitum parem!»

Fabula significat insanire eos, qui salutem suam Tyrannorum fidei committunt.[22]

OUTRA [FÁBULA] PARA O ADVOGADO BENEČIĆ

Se tens vontade de rir e os clientes não te batem à porta,

ouve, Benečić, uma fábula

arguta e com muito sal. Foi uma vez

um burro ao covil do leão,

por deferência, para visitar o rei enfermo.

Este finge que é de muito bom grado

que vê o hospede e diz: «Tu, ó mais caro dos seres

e pessoa justamente querida,

tenho muito prazer em que venhas de boa saúde. Aproxima-te

e conhece a minha protecção régia.

Receberás um prémio digno da tua coragem.». Ele, submisso,

faz os agradecimentos do costume.

Zurra e, para surpresa do outro, toca-lhe com a cauda como amigo,

oh, ignorante da sua sorte!

pois acaba por tombar com as violentas garras cravadas nos seus membros

e, banhado em sangue de forma cruel,

mancha a terra. O leão despedaça os ossos da cabeça, à procura

de um e de outro lado da medula oculta.

Mas, longe da colina, uma raposa exclama: «Aqui tens, ó pateta!

Todos os que demandam

a ímpia casa de um Rei, a esses, Deus arranca-lhes o cérebro todo.

É em vão que procuras a desejada

presa da besta inocente. Rói os ossos, talvez tu

venhas a sofrer um desfecho igual!»

A fábula significa que são insensatos os que confiam a sua vida à protecção dos tiranos.

Esta segunda fábula parece complementar a anterior, uma vez que volta a ilustrar a natureza constante do rei-leão, malgrado a dissimulação que o caracteriza desta vez, mostrando o quão insensato é confiar a protecção da vida a um rei carniceiro e cruel. Serviu de tema principal a velha história do leão doente ou velho que, usando de artifícios variados, consegue devorar os animais mais fracos que o visitam[23].

A maneira curiosa e hábil como a fábula é introduzida evidencia, desde logo, uma autêntica captatio beneuolentiae, quando o poeta afiança que o texto em apreço representa uma excelente forma de ocupar o tempo, quer seja o do advogado Simon Benečić, a quem o poema se dirige, quer seja o de um qualquer leitor que tenha vontade de se rir um pouco. Esta fábula, à semelhança da anterior, apresenta uma estrutura lógica e narrativa bem delineada, com o habitual desenvolvimento em forma dialogada, que culmina na conclusão moralizante, ainda mais destacada, neste caso, por estar escrita em prosa. Curiosamente, em ambas as fábulas, a raposa assiste de longe, com grande cautela, ao desenrolar dos factos, demonstrando a consciência perfeita das consequências terríveis que podem advir a alguém menos prevenido em relação à actuação do rei.

Uma vez mais, o poeta maneja com grande mestria vários motivos presentes na tradição fabulística greco-latina, acabando por compor um belo poema em que a graça poética se funde com uma profunda dimensão ética[24].

 

Por último, merecem a nossa especial atenção duas composições mais curtas (que levam, por isso, o título de fabella e iocus), também publicadas no fim da colectânea de dísticos morais.

Na segunda edição do Cato Minor, na parte final dos Moralium distichorum libri III, encontra-se um poema de apenas dois dísticos com o título Hispanica fabella. Presume-se que houve intenção de agregar esta fabella às duas fábulas mais extensas comentadas anteriormente, com as quais termina o conjunto dos dísticos morais, pela relação evidente entre os três poemas, uma vez que a Hispanica fabella não ocupava, na realidade, este lugar na primeira edição:

HISPANICA FABELLA

Lingua caput quondam (uetus est fabella) rogabat:

«Ecquid agis mea lux? Num tua salua satis?»

Sic caput arridens: «Belle soror omnia cedent,

si tu, quae mea mors et mea uita, siles».[25]

PEQUENA FÁBULA HISPÂNICA

Perguntava um dia a língua à cabeça (é velha a fábula):

«Que andas a tramar, ó minha luz? Porventura não está bem a tua [língua]?»

Assim respondeu a cabeça a sorrir: «Tudo correrá bem, irmã,

se tu, que és a minha morte e a minha vida, estiveres calada.»

Na origem desta pequena e enigmática fábula em forma dialógica, entre a cabeça e a língua, foi possível rastrear um celebrado versículo do Livro dos Provérbios, um dos livros sapienciais do Antigo Testamento[26].

A segunda composição a que nos referimos é um curioso poema, intitulado Petronii Boloniensis Iocus, que foi publicado, na segunda edição do Cato Minor, no seguimento dos últimos dísticos morais do livro terceiro. Trata-se de uma pequena história em que uma raposa aparece a brincar com a pretensa falta de qualidade da obra do poeta eborense, em casa de quem diz ter encontrado mais palavras do que trabalho. A raposa refere ter visto nesse local muitos dísticos semigregos (semigraeca disticha), sendo uma provável alusão a vários dísticos morais da colecção em que surgem palavras ou mesmo frases em língua grega.

 

 

É enorme o espanto da raposa por os poemas, decerto os Moralium distichorum libri III, não terem ainda sido queimados ou levados pelo vento, ainda que ela tenha abandonado, no final, a casa de Flávio (recorde-se que Iacobus Flauius Eborensis é o nome do poeta que se encontra gravado no frontíspicio do Cato Minor) com um sorriso matreiro nos lábios:

PETRONII BONONIENSIS IOCVS

Ingressa uulpes Flauii domunculam,

«Papae, quot», inquit, «semigraeca disticha,

quot uerba, uerum facta nulla conspicor!

Cur huc deorum cessat ille loripes

faber uenire cum ministris Aeoli,

dignum ut poeta praebeat spectaculum?»

Haec eloquuta pauca, mox ridens abit.[27]

GRACEJO DE PETRÓNIO DE BOLONHA

Ao entrar na casinha de Flávio, uma raposa

exclamou: «Oh, quantos dísticos semigregos,

quantas palavras, mas não vejo nenhum trabalho!

Por que razão tarda em vir para aqui o célebre ferreiro

coxo dos deuses com os auxiliares de Éolo,

para oferecer um espectáculo digno do poeta?»

Pronunciou estas poucas palavras; a seguir, sorrindo, partiu.

Não se sabe, de facto, quem está por detrás do nome Petronius Bononiensis, embora pareça ser o próprio Diogo Pires[28]. Note-se, porém, que é bastante invulgar o meio utilizado pelo poeta para brincar com a sua própria obra, recorrendo à estrutura da fábula tanto na forma (senários iâmbicos) como no conteúdo (paralelismo com a fabulística greco-latina).

É curioso imaginar o efeito que a leitura deste poema despertaria nos jovens discípulos, que assim dispunham da rara oportunidade de gracejar com os dísticos morais na presença do próprio autor/professor. Este, por sua vez, podia também aproveitar o ensejo para explorar a relação com as fábulas da literatura greco-latina, que não seriam, decerto, desconhecidas dos jovens alunos de latinidades.

 

Diogo Pires revelou-se desde sempre um poeta inspirado, pelo que não surpreende que tenha usado o seu talento em prol da formação moral e linguística dos jovens alunos de humanidades, no respeito, aliás, do famoso preceito horaciano que via na poesia um duplo fim: prodesse e delectare[29]. Diogo Pires deixa-nos um valioso testemunho do lugar de eleição que a fábula ocupava no exercício da prática pedagógica humanista, cujo objectivo último era proporcionar aos jovens uma formação de carácter integral. A fábula, porém, é apenas um dos vários géneros cultivados na vasta colectânea do humanista português, que testemunham, no seu conjunto, esta associação íntima da ética com a formação linguística, através da poesia. O Cato Minor é, por conseguinte, uma obra que nasce naturalmente desta comunhão profícua entre a poesia e o ensino, entre a expressão mais pura do texto poético e a dimensão ética que dele emana.



[1] D. Erasmi Roterodami epitaphia, per eruditiss. aliquot viros Academiae Lovanien. edita. Lovanii, ex officina Rutgeri Rescii, Men. Mart. 1537. Estes poemas evocativos de Erasmo, traduzidos por Miguel Pinto de Meneses (poemas em latim) e por Walter de Sousa Medeiros (poemas em grego), podem encontrar-se em Artur Moreira de SÁ, De re Erasmiana: aspectos do erasmismo na cultura portuguesa do século XVI. Braga 1977, 337-343. Mais tarde, C. A. ANDRÉ, num trabalho sugestivamente intitulado «Diogo Pires e a lembrança de Erasmo», Humanitas 41-42 (1989-1990), 81-98, analisa em pormenor estas composições, apresentando uma nova tradução dos poemas em latim.

[2] Apresenta-se a descrição bibliográfica das duas edições venezianas da colectânea, que foi significativamente aumentada e reformulada na segunda edição:

FLAVII IACOBI / EBORENSIS / CATO MINOR, / SIVE DYSTICHA MORALIA / ad Ludimagistros Olyssipponenses. / ACCESSERE NOVA EPIGRAMMATA, / & alia nonnulla eodem Auctore. / Opus pium, et erudiendis pueris ad- / prime necessarium. / VENETIIS, / Sub signum Leonis. MDXCII.

FLAVII / IACOBI EBORENSIS / CATO MINOR, / SIVE DISTICHA MORALIA / Ad Ludimagistros Olysipponenses. / ACCESSERE EPIGRAMMATA, / & alia nonnulla eodem auctore, quae / sequens pagella indicabit. / OPVS PIVM, ET ERVDIENDIS / pueris adprime necessarium. / Psal. 33. / Uenite filij, audite me, timorem Domini docebo uos. / VENETIIS, MDXCVI. / Apud Felicem Valgrisium.

[3] A esta obra de Diogo Pires, dedicámos a nossa dissertação de doutoramento, subordinada ao título O Cato Minor de Diogo Pires e a Poesia Didáctica do séc. XVI. Aveiro, Universidade de Aveiro – Departamento de Línguas e Culturas, 2005 (versão policopiada).

[4] Para uma reflexão sobre a terminologia utilizada na educação romana para designar o professor da instrução primária e secundária, cf. E. W. BOWER, «Some technical terms in roman education»: Hermes 89 (1961) 462-477.

[5] Cf. H.-I. MARROU, Histoire de l’éducation dans l’antiquité. Paris 71981, vol. I, 227-236; vol. II, 69-70; S. F. BONNER, La educacíon en la Roma antigua: desde Catón el Viejo a Plinio el Joven. Barcelona 1984, 221-239 [versão original: Education in Ancient Rome. Berkeley, University of California Press, 1977]; Gian Franco GIANOTTI, «I testi nella scuola»: G. CAVALLO, P. FEDELI, A. GIARDINA, (direttori), Lo spazio letterario di Roma antica. Roma 1993, vol. I, 438-443.

[6] Quint. Inst. 1.1.35-36. Sobre a mesma prática, cf. Sen. Ep. 33.7; 94.9.

[7] Quint. Inst. 1.9.2-3. Cf. Domenico LASSANDRO, «La favola antica: proposta di un percorso didattico»: C. SANTINI – L. ZURLI (eds.), Ars narrandi. Scritti di narrativa antica in memoria di Luigi Pepe. Napoli 1996, 208.

[8] A tradição fabulística greco-latina teve uma excelente recepção em Portugal, sobretudo entre os autores que escreveram em português ou castelhano durante o século XVI. Remetem-se os interessados para dois trabalhos recentes que exploraram o tema, embora nenhum dos dois estudos tenha contemplado o caso de Diogo Pires: Luciano José dos Santos Baptista PEREIRA, A fábula em Portugal: contributos para a história e caracterização da fábula literária. Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2003 (dissertação de doutoramento – versão electrónica); Alexandra Maria de Melo MADAIL, Recepção literária de Esopo e Fedro em autores portugueses. Aveiro, Universidade de Aveiro – Departamento de Línguas e Culturas, 2003 (dissertação de mestrado – versão policopiada).

[9] Aesop. 354; Avian. 11. As fábulas de Aviano foram recentemente traduzidas e comentadas por Jorge Manuel Tribuzi Correia de MELO, As fábulas de Aviano: introdução, versão do latim e notas. Aveiro, Universidade de Aveiro – Departamento de Línguas e Culturas, 2001 (dissertação de mestrado – versão policopiada).

[10] Cato Minor (1596), Disticha Moralia 2.107-108.

[11] Gel. 2.29; Avian. 21; Babr. 88.

[12] Cato Minor (1596), Disticha Moralia 2.277-278.

[13] Aesop. 81.

[14] Cato Minor (1596), 150-151. Os dois primeiros versos encontram-se traduzidos por C. A. ANDRÉ, Um judeu no desterro: Diogo Pires e a memória de Portugal. Coimbra 1992, 71.

[15] Sobre a fortuna da fábula composta em dísticos elegíacos na Antiguidade e na Idade Média, cf. F. RODRÍGUEZ ADRADOS, «De la fábula griega a la fábula latina en dísticos elegiacos»: F. RODRÍGUEZ ADRADOS, De Esopo al Lazarillo. Huelva 2005, 459-472.

[16] Cato Minor (1596), 41.

[17] Cato Minor (1596), 40.

[18] Cf. Aesop. 207 (Λέων καὶ ὄναγρος), 209 (Λέων καὶ ὄνος καὶ ἀλώπηξ); Phaed. 6 (Vacca et capella, ouis et leo).

[19] Cf. Phaed. 135 (Terraneola et uulpes).

[20] Cato Minor (1596), 42.

[21] Não é a única vez que Diogo Pires dedica os seus poemas a Simon Benečić. Refira-se, em particular, a notável elegia Ad Benessum (Eleg. 1.10), onde reflecte amargamente sobre os males do exílio, a qual foi editada e traduzida por C. A. ANDRÉ, Um judeu no desterro..., op. cit., 41-42.

[22] Cato Minor (1596), 42.

[23] Cf. Aesop. 196 (Λέων <γηράσας> καὶ ἀλώπηξ); 199 (Λέων καὶ ἀλώπηξ καὶ ἔλαφος); 205 (Λέων καὶ λύκος καὶ ἀλώπηξ).

[24] Usamos, com a devida vénia, a feliz expressão de D. LASSANDRO, «La favola antica: proposta di un percorso didattico», op. cit., 208: «Quei messaggi sono la ricchezza della favola e ne hanno determinato – e ne determinano – la fortuna nel corso dei secoli: nella fusione, così efficace sul piano narrativo, di sorridente grazia poetica e di profonda dimensione etica sta infatti il valore perenne di un genere letterario leggibile e fruibile in ogni età della vita, dall’infanzia alla vecchiaia.»

[25] Cato Minor (1596), 43.

[26] Prov. 18.21: «Mors et vita in manu linguae: qui diligunt eam comedent fructus eius.». A este mesmo versículo alude, por exemplo, a Regra de São Bento, no capítulo dedicado ao silêncio (VI De taciturnitate). Para uma análise da versão latina e portuguesa deste capítulo da Regula Benedicti, bem como da história da sua riquíssima tradição manuscrita e impressa em Portugal, acompanhada da análise linguística  das antigas versões portuguesas, cf. Ivo CASTRO, Introdução à História do Português. Lisboa 22006, 172-184.

[27] Cato Minor (1596), 37.

[28] D. KÖRBLER, «Život i rad humanista Didalka Portugalca, napose u Dubrovniku»: RAD Jugoslavenska Akademija Znanost i Umjetnost (1917), 22-23, sugere que talvez este poema seja da própria autoria de Diogo Pires. A reforçar esta interpretação está o facto de ter sido publicado em sítios diferentes nas duas edições do Cato Minor: na primeira, encontra-se agregado a outro poema nos testimonia; na segunda, integra os Moralium distichorum libri III e os dois poemas, antes agrupados num só, separam-se e fazem parte de capítulos distintos.

[29] Hor. Ars 333.

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PUBLICACIÓN ORIGINAL:

ANDRADE, António Manuel Lopes — «Os Senhores do Desterro de Portugal: Judeus Portugueses entre Veneza e Ferrara em meados do século XVI»: Veredas – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas 6 (2006), pp. 65-108.


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EL AUTOR
António Manuel Lopes Andrade. Curriculum y otros artículos del autor en este blog:

OS SENHORES DO DESTERRO DE PORTUGAL. Judeus Portugueses em Veneza e Ferrara em meados do séc. XVI

A FIGURA DE SALOMÃO USQUE: A FACE OCULTA DO HUMANISMO JUDAICO-PORTUGUÊS

 

OS SENHORES DO DESTERRO DE PORTUGAL. Judeus Portugueses em Veneza e Ferrara em meados do séc. XVI

OS SENHORES DO DESTERRO DE PORTUGAL. Judeus Portugueses em Veneza e Ferrara em meados do séc. XVI

António Manuel Lopes Andrade

Universidade de Aveiro[1]

 

 

A experiência e o capital adquiridos pelos judeus portugueses, sobretudo desde os primórdios da expansão portuguesa no século XIV, formaram uma comunidade capaz de aproveitar as novas e irrecusáveis oportunidades que iam surgindo em África, no Oriente, no Brasil e também nas colónias espanholas. A descoberta do caminho marítimo para a Índia constituiu um marco decisivo que veio revolucionar por completo todo o sistema em que assentava o comércio mundial de especiarias.

No virar do século, Portugal detém o mais vasto império alguma vez alcançado, assente numa relação bastante estreita e frutuosa entre poder e saber, que propiciou um avanço extraordinário em múltiplas áreas do conhecimento entre as quais se destacam a astronomia, a cartografia, a matemática ou a medicina. Os judeus portugueses, entretanto convertidos à força em cristãos-novos, mantêm-se, na sua grande maioria, no país e não são alheios a este projecto grandioso, em que participam com empenho e dedicação, tanto na produção de riqueza como de saber.

A expulsão dos judeus do território português, em 1497, executada de forma mais simulada que efectiva, e a tardia implantação da Inquisição no nosso país, deu azo a que as primeiras décadas de Quinhentos constituíssem uma época de relativa paz e prosperidade para os cristãos-novos residentes em Portugal. Na verdade, a conversão forçada dos judeus, por imposição de D. Manuel, coincidiu com o momento áureo da expansão portuguesa e, naturalmente, foi nesse meio e nessas circunstâncias que os cristãos-novos se envolveram, desde o primeiro momento, no comércio dos produtos da metrópole e das colónias, em particular as drogas e especiarias (onde a pimenta sempre ocupou um lugar ímpar), o sal e o açúcar, e em todas as actividades que lhe estavam associadas. De facto, não é por acaso que são cristãos-novos portugueses, em grande medida, os homens que, em Lisboa e Antuérpia, lançam as bases do grande comércio à escala mundial.

A participação destacada desta comunidade no comércio transoceânico português e, mais tarde, espanhol, ao longo do século XVI, é uma das actividades mais importantes que contribui, decisivamente, para a criação e fixação de importantes comunidades judaico-portuguesas em Londres, Antuérpia, Veneza, Ferrara ou Ancona, desde as primeiras décadas de Quinhentos. Assiste-se a uma fase inicial em que se dá o estabelecimento de alguns mercadores judaico-portugueses nas novas praças comerciais, que depois abre caminho a uma segunda fase, menos selectiva, na qual os cristãos-novos menos favorecidos tentam a sua sorte e prosseguem o caminho já antes trilhado pelos mercadores.

O florescimento económico, alicerçado sobretudo na intensa actividade comercial, depressa criou as condições favoráveis para que cada vez mais membros desta comunidade aproveitassem as oportunidades que se lhes ofereciam por forma a alcançar uma posição cimeira em várias áreas, tanto dentro como fora de Portugal. A própria conversão geral contribuiu, por estranho que isso possa parecer, para abrir as portas de algumas actividades aos cristãos-novos, que antes estavam interditadas aos judeus. No comércio e na medicina, na literatura e na alta finança, na ciência e na universidade, na filosofia e na imprensa, nestas e noutras áreas, não será difícil encontrar vários nomes de judeus ou cristãos-novos portugueses que se distinguiram, nacional e internacionalmente, nos séculos XV e XVI.

Uma grande parte dos judeus portugueses que se vão notabilizar na diáspora sefardita são filhos desta conjuntura extraordinária que fazia do império português o mais vasto alguma vez alcançado. Os cristãos-novos que trilharam os caminhos do desterro, sobretudo a partir dos primeiros anos da década de trinta, manifestam geralmente orgulho neste passado glorioso que foi também o seu e para o qual deram uma contribuição notável a vários níveis.

A intolerância religiosa, o fanatismo e as terríveis perseguições de que os cristãos-novos foram um alvo privilegiado, em particular após o estabelecimento da Inquisição em Portugal não constituíram motivo bastante para que muitos dos que partiram renegassem para sempre o país que os viu nascer e crescer. O exílio teve inclusivamente o condão de, por uma parte, reforçar mais ainda a união entre os membros da comunidade perseguida e, por outra, de manter bem viva, na sua memória, a recordação da terra natal.

Não se estranha, por conseguinte, que Duarte Pinel, alias Abraão Usque, tenha usado em Ferrara, como marca de impressor, a imagem da esfera armilar, um notável símbolo manuelino associado à própria ciência náutica e ao extraordinário poderio político, económico e científico, proporcionado pelas navegações portuguesas. A esfera armilar, em simultâneo instrumento de observação e modelo do próprio universo, foi adoptada por D. Manuel como emblema pessoal, dando assim a imagem perfeita da vastidão geográfica do império lusitano.

O estabelecimento da Inquisição, em 1536, e a subsequente transferência da Universidade de Lisboa para Coimbra, em 1537, correspondem, no fundo, à concretização dos desígnios de D. João III. Estas iniciativas régias, todavia, acarretaram graves e profundas consequências, tanto para o país, quanto para a comunidade judaico-portuguesa. A relação estreita entre poder, saber e riqueza, em que assentara o sucesso do império marítimo português, acabava de sofrer um rude golpe. Com os judeus portugueses que eram forçados a abandonar, em cada vez maior número, a terra que os vira nascer, partia também uma parte importante da nação lusitana. Com eles partia, sem dúvida, uma cultura, uma língua e uma experiência únicas. Uma parte substancial do saber e da riqueza nacional acompanha os numerosos cristãos-novos que rumam a Antuérpia ao longo das décadas de trinta e quarenta.

As actividades da pioneira e empreendedora comunidade judaico-portuguesa, estabelecida na plataforma comercial de Antuérpia, desde as primeiras décadas do século XVI, é um exemplo paradigmático desta realidade. Há um núcleo reduzido de grandes mercadores cristãos-novos, encabeçado por Diogo Mendes, que criam, desde muito cedo, as condições que tornaram possível, alguns anos mais tarde, a fuga generalizada dos cristãos-novos, seguindo as mesmas vias de comunicação das mercadorias. Foram os membros do chamado Consórcio da Pimenta, que estiveram na base do grande comércio internacional associado, primeiro, às especiarias, em particular à pimenta, e depois alargado a muitos outros produtos provenientes da metrópole e das colónias portuguesas.

Mas são também estes mesmos homens que assumem um papel decisivo e incontornável na diáspora sefardita, organizando e financiando redes de apoio à emigração dos seus conterrâneos menos favorecidos. Nessa primeira metade de Quinhentos foram lançadas as sólidas raízes de uma estrutura alargada de base comercial, cultural e religiosa, assente em redes familiares, cujos membros se encontravam dispersos pelas grandes praças comerciais europeias.

 

Amato Lusitano (João Rodrigues de Castelo Branco), Duarte Gomes (Salomão Usque–David Zaboca), Diogo Pires (Isaia Cohen), Duarte Pinel (Abraão Usque), Manuel Rodrigues (Manuel Brudo), Luís Nunes de Santarém, Manuel Reinel (Abraham Abendana) ou Samuel Usque contam-se entre aqueles que tomaram a dolorosa decisão de abandonar o país e constituem, precisamente, alguns dos mais notáveis Senhores do Desterro de Portugal. Entre as décadas de trinta e quarenta, todos eles, sem excepção, seguem os penosos caminhos do exílio rumo ao empório de Antuérpia.

Entre os desterrados encontram-se, naturalmente, algumas das figuras de proa da cultura portuguesa do século XVI. Amato Lusitano, Diogo Pires, Duarte Gomes, Luís Nunes e Manuel Reinel haviam obtido, em conjunto, a sua formação superior, no Estudo de Salamanca, em Artes e Filosofia, e Medicina. Alguns deles continuaram depois os seus estudos na Universidade de Lisboa, que Luís Nunes e Duarte Gomes honraram com o seu magistério, até à transferência definitiva da instituição para Coimbra.

O percurso atribulado destes homens retrata, como é notório, a fuga irreparável do saber. O desenvolvimento cultural e científico do país perde, por muito tempo, o fulgor e o dinamismo que antes revelara. Mesmo os colegas que ficaram, como António Luís, Jerónimo Cardoso, Pedro Nunes ou Tomás Rodrigues da Veiga, ou foram vítimas de processos inquisitoriais, ou viram pelo menos o seu pensamento e acção fortemente condicionados pela censura e pelo medo de eventuais represálias, que podiam atingir, inclusive, cristãos-velhos e estrangeiros, como se verificou mais tarde nos processos inquisitoriais instaurados aos mestres do Colégio das Artes ou ao célebre Damião de Góis.

Em Lisboa e em Antuérpia, a acção da família Mendes-Benveniste assume um papel de indiscutível importância para a comunidade judaico-portuguesa. A morte de Francisco Mendes, em Janeiro de 1535, constituiu um golpe profundo e inesperado, não só na Casa Mendes-Benveniste, mas na própria liderança, organização e estratégia dos cristãos-novos, que no ano seguinte assistem incrédulos ao tão temido e anunciado estabelecimento da Inquisição em Portugal, vendo assim malogradas todas as suas diligências para que tal não viesse a suceder.

Como se não bastasse, a imensa fortuna que Francisco Mendes havia deixado em testamento à viúva, D. Beatriz de Luna, e à sua única filha era alvo de uma cobiça cada vez maior. Na sequência da morte de Francisco Mendes, D. João III diligenciou sem demora no sentido de procurar manter em Portugal a fortuna legada pelo famoso mercador-banqueiro lisboeta. A estratégia passava por tentar assegurar que a jovem filha de Francisco Mendes e de Beatriz de Luna, herdeira de metade da fortuna, se mantivesse no reino até ao momento em que, convenientemente, casaria com alguém da casa real[2].

Beatriz de Luna ofereceu forte resistência à concretização dos anseios do monarca português. Ao abandonar para sempre o país, por volta de meados de 1537, deita a perder, irremediavelmente, os planos de D. João III. A ‘Senhora’, como ficou conhecida entre as comunidades sefarditas, embarca em Lisboa na companhia da pequena filha, da irmã, Brianda de Luna, e de João e Bernardo Micas, os seus dois sobrinhos, filhos do antigo lente do Estudo Geral, o prestigiado Doutor Agostinho Micas. Algum tempo depois, após uma passagem por Londres, aportaria em Antuérpia, onde passou a administrar os negócios da família em conjunto com o seu cunhado, Diogo Mendes.

Do mesmo modo, quase todos os Senhores do Desterro de Portugal se estabeleceram em Antuérpia, mais ou menos duradouramente, antes da passagem subsequente à península itálica. E, desde logo, alguns houve que deixaram a sua obra impressa. Nessa cidade, Amato publica o seu primeiro trabalho científico, em 1536, e a poesia latina e grega do humanista Diogo Pires, rapidamente integrado no círculo erasmista de Lovaina-Antuérpia, começa a aparecer estampada em obras de autores consagrados[3].

 

Refira-se, porém, que não é nosso propósito, de momento, analisar em pormenor a acção dos membros mais destacados da Nação Portuguesa, em Antuérpia. Pretende-se apenas traçar, sumariamente, o percurso seguido por Duarte Gomes, alias Salomão Usque–David Zaboca, e por Duarte Pinel, alias Abraão Usque, antes da chegada a terras italianas. Mais adiante, proceder-se-á à análise comparativa do importante papel que um e outro, em Veneza e Ferrara, viriam a desempenhar no plano cultural e literário, a partir de meados do século XVI.

 

Aron Leoni, um dos investigadores que mais tem contribuído para traçar, com seriedade e rigor, a história da Nação Portuguesa, acaba de publicar um trabalho notável onde apresenta, com sólida base documental, novíssimos dados sobre a composição e as actividades da família de Duarte Gomes[4]. Sabe-se, actualmente, que três irmãos – Duarte Gomes, Tomás Gomes e Guilherme Fernandes – ocupavam funções do mais alto nível ao serviço da Casa Mendes-Benveniste. Guilherme Fernandes entrou ao serviço de Francisco Mendes nos tempos áureos em que este estava estabelecido em Lisboa e o irmão, Diogo Mendes, em Antuérpia. Corria o ano de 1525, quando começou a carreira daquele que foi um dos feitores mais importantes da família. É significativo que Diogo Mendes tenha determinado no seu testamento que a administração dos negócios seria entregue à sua cunhada, D. Beatriz de Luna, que seria assistida nessa missão pelo seu sobrinho, João Micas, e por Guilherme Fernandes[5].

A presença de Duarte Gomes e da família em Antuérpia está também documentada pelas interessantes declarações prestadas por Luís Franco, no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa, no dia 10 de Setembro de 1574[6]. Este cristão-novo, natural de Aveiro, havia regressado pouco antes de Ferrara, pelo que as suas palavras denotam um bom conhecimento da comunidade judaico-portuguesa do Ducado Estense. O depoimento revela que Duarte Gomes havia casado com uma filha do livreiro lisboeta, João Fernandes, e apresenta uma descrição pormenorizada dos descendentes do «fisiquo natural de Lixboa».  O testemunho reveste-se de grande importância, porquanto dá a conhecer que uma das quatro filhas de Duarte Gomes estava casada com um criado do Duque de Ferrara, o que vem confirmar as excelentes relações de que Duarte Gomes sempre desfrutou nos círculos mais restritos da Corte de Ferrara.

Do mesmo modo, no segundo dos dois processos instaurados ao mercador português pelo S. Uffizio di Venezia, em 1568, o mercador florentino Lorenzo Guicciardini[7] declarou tê-lo conhecido muitos anos antes na cidade de Antuérpia[8]. Aliás, comprova-se que Duarte Gomes já estava ao serviço de D. Beatriz de Luna, se não antes, pelo menos em 1544, porque aparece descrito num documento desse ano como «gouvernant la maison de feu Diego Mendiz»[9].

Por Antuérpia passaram também Abraão e Samuel Usque, antes de se encaminharem para terras italianas. Sabe-se que Abraão estava em Antuérpia por volta de 1549, sendo lícito pensar que terá partido para sul, não muito tempo depois[10]. Já a presença de Samuel nas margens do Escalda tem de ser forçosamente anterior à data da morte de Diogo Mendes, que ocorreu por volta do mês de Agosto de 1543. Na verdade, é ponto assente que o famoso cronista, e também mercador, esteve ao serviço de Diogo Mendes e, mais tarde, da sua viúva, D. Brianda de Luna[11].

A comunidade judaico-portuguesa estabelecida em Antuérpia assistiu a uma progressiva degradação da sua segurança e liberdade ao longo da década de trinta, sob a pressão das constantes iniciativas tuteladas pela regente, Maria de Hungria, e pelo seu irmão, Carlos V. No final dessa década, ganha forma e acentua-se um largo movimento de transferência de pessoas e capitais para terras italianas.

Veneza, Ferrara e Ancona são os três destinos prioritários, tanto da comunidade judaico-portuguesa que já estava estabelecida em Antuérpia, como também dos compatriotas que continuavam, em grande número, a desembarcar nas margens do Escalda, provenientes de Portugal. Foram vários os estados italianos que tudo fizeram no sentido de procurar atrair para os seus territórios os membros da comunidade judaico-portuguesa estabelecida em Antuérpia, através da concessão de privilégios, garantias e isenções.

Ercole II, o Duque de Ferrara, foi o soberano que mais êxito obteve, desde o final da década de trinta, com a sua política activa e empreendedora, para atrair os mercadores portugueses ao seu ducado. A própria Cúria romana, ao mesmo tempo que prosseguia as negociações com os representantes de D. João III e dos cristãos-novos portugueses, com o objectivo de estabelecer a Inquisição em Portugal, autorizava e favorecia a fixação dos mercadores cristãos-novos no estado papal de Ancona.

À semelhança da estratégia posta em prática pelo Duque de Ferrara, Cosimo I, grão-duque de Toscana, procura atrair, de forma muito selectiva, alguns dos mais destacados membros da comunidade judaico-portuguesa, estabelecidos tanto em Antuérpia como em Portugal. Com esse objectivo definido, concede salvos-condutos, com amplas garantias e privilégios, a alguns destacados judeus portugueses e respectivas famílias, tanto a mercadores, como a intelectuais de renome, na expectativa de os atrair aos seus domínios.

Não deixa de ser significativo o facto de Cosimo I ter decidido conceder salvo-condutos às duas irmãs, Beatriz e Brianda de Luna, ou ao antigo colega salmantino de Duarte Gomes, o notável médico Amato Lusitano[12]. Entre o final de Fevereiro e o começo de Março de 1549, foi atribuído um salvo-conduto a Fernando Mendes, que se havia de distinguir como juiz da Rota, e a Tomás Gomes, que o podia estender ao seu parente Duarte[13]. Trata-se, evidentemente, dos dois irmãos Tomás e Duarte Gomes[14]. A chegada deste último à península italiana deve ter ocorrido, com grande probabilidade, no final da década de quarenta.

Os Mendes-Benveniste, ao longo da década de quarenta, também foram abandonando, pouco a pouco, a praça de Antuérpia e estabeleceram-se sobretudo em Veneza e Ferrara, antes de partirem para Constantinopla[15]. Beatriz de Luna encarrega pessoalmente Duarte Gomes de tratar da venda da mansão de Antuérpia, que acabaria por ser adquirida por três flamengos, incumbindo o seu fiel agente de acautelar eventuais dificuldades que Brianda de Luna, a sua irmã desavinda por questões de heranças, poderia causar à boa conclusão do negócio[16].

 

Nos primeiros anos da década de cinquenta, Duarte Gomes viveu entre Ferrara e em Veneza, onde se veio a estabelecer em permanência com os seus três filhos mais velhos «in contra’ de Santa Maria Formosa al ponte del Anzelo, in la casa grande sora l’intagliador»[17]. No Verão de 1552, Beatriz de Luna abandona a Sereníssima e parte definitivamente para Constantinopla, onde viria a adoptar o nome hebraico de Grácia Nasci. Para trás deixava os antigos agentes comerciais, a quem reconfirmou a qualidade de seus procuradores legais[18]. Duarte Gomes e o irmão Guilherme Fernandes, bem como Agostinho Henriques, eram os três homens a quem passava a caber, a partir desse momento, a gestão dos negócios da Casa Mendes-Benveniste[19].

 

Salomão Usque publicou, em 1567, nos prelos venezianos de Niccolò Bevilacqua, a primeira tradução para língua castelhana de parte do Canzoniere de Petrarca[20]. Os exemplares conhecidos deste livro denotam uma única mas significativa diferença entre si: uns apresentam no frontispício o nome do tradutor como «Salusque Lusitano», enquanto outros têm impresso «Salomon Usque Hebreo». A pessoa que está por detrás deste nome, que alterna entre o qualificativo de português e de hebreu, não tem sido fácil de identificar, ainda que seja relativamente consensual atribuir a esta figura a condição de cristão-novo português.

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas. Os problemas agudizam-se, quando se procura identificar o autor da tradução castelhana da primeira parte do Canzoniere de Petrarca ou equacionar as eventuais relações entre os três célebres cristãos-novos portugueses que ostentam o mesmo apelido: Abraão, Samuel e Salomão Usque.

Os estudiosos dividem-se entre aqueles que defendem e aqueles que negam a tese da identificação entre o poeta Salomão Usque e o mercador Duarte Gomes, agente comercial e pessoa da inteira confiança da famosa D. Grácia Nasci. Não obstante a longa e acesa discussão sobre o assunto, estamos em crer que, actualmente, se encontram reunidos dados suficientes para se poder afirmar, sem receio, que Duarte Gomes e Salomão Usque são a mesma pessoa[21].

Amato Lusitano e Girolamo Ruscelli, duas figuras das relações próximas de Duarte Gomes, apresentam-nos dois testemunhos coincidentes, irrefutáveis e inequívocos de que Duarte Gomes era um exímio tradutor de Petrarca para a língua castelhana[22].

Convém notar, porém, que a produção literária assinada com o nome Salomão Usque não se limitou apenas à referida tradução petrarquiana[23]. Foi também autor de uma tragédia intitulada Ester, a qual foi representada pela primeira vez no ghetto de Veneza, por ocasião da festa de Purim, circa 1560. Segundo a tradição, esta peça foi escrita por Salomão Usque com a ajuda de Lazaro di Grazian Levi. A obra primitiva, da qual se conhece apenas uma adaptação, publicada mais tarde pelo ilustre rabino Leon Modena, constitui um dos primeiros dramas hebraicos em vernáculo[24].

Sob o nome de «Salusque Lusitano», encontramos também um soneto em castelhano, a abrir os Comentarios de Alfonso de Ulloa[25]. Neste breve poema dirigido ao leitor, tece um rasgado elogio a Ulloa por ter dedicado a sua obra a D. Luis de Zúñiga y Requesens. Atribuem-se ainda a Salomão Usque dois outros poemas em italiano: a Canzone sull’opera de’ sei giorni, dedicada ao cardeal Carlo Borromeo, publicada numa antologia compilada por Cristoforo Zabata sob o nome de «Salamon Usque Ebreo»[26]; e a Canzona allo Illustrissimo et eccellentissimo Signor Duca d’Urbino, Guidobaldo II Montefeltro, cujo autor aparece mencionado no final da composição simplesmente como «Salamone Usque»[27].

A produção literária publicada sob o nome de Salomão Usque (incluindo todas as variantes) resume-se, portanto, à tragédia perdida Ester e a três composições poéticas, um soneto em castelhano e duas canções em italiano, à qual acresce, evidentemente, a tradução castelhana da primeira parte do Canzoniere de Petrarca, que é a sua obra-prima.

Torna-se imperioso, por conseguinte, reflectir sobre as razões que terão levado Duarte Gomes a assumir, em parte significativa da sua obra, os pseudónimos «Salusque Lusitano», «Salomon Usque Hebreo», ou simplesmente «Salamone Usque». São vários os factores, em nossa opinião, que podem ter contribuído para que o ilustre mercador português assim tivesse procedido.

Não são conhecidas, em concreto, as razões que o terão levado a escolher o apelido Usque, mas talvez possa haver aqui uma espécie de jogo com os nomes dos seus dois famosos conterrâneos, Samuel e Abraão Usque. O modo como Duarte Gomes aglutina Salomon Usque na forma reduzida Salusque, de que se não conhece outro registo, a não ser este, assim parece também indiciar.

Têm sido aventadas várias hipóteses, nem sempre concordantes, para traçar as relações possíveis entre os três cristãos-novos portugueses que ostentam o apelido Usque. Estamos em crer que a forma Salomon Usque, nas suas três variantes, não passa de um engenhoso pseudónimo literário, pelo que não parece ser lícito equacionar, nessa base, qualquer tipo de relação familiar entre Duarte Gomes e Abraão/Samuel Usque. Os documentos que apresentam Zaboca como o apelido de família de Duarte Gomes invalidam, à partida, qualquer relação familiar directa com os outros dois Usque.

Até prova em contrário, talvez seja mais prudente não proceder ao estabelecimento de relações apenas com base na semelhança do apelido. O avanço da investigação, porém, ainda não foi suficiente para aclarar por completo que tipo de relação familiar, se acaso existe, pode ser estabelecida entre os Usques. Ainda assim, é possível avançar com alguns dados que nos permitem analisar, com relativa segurança, a questão das supostas relações familiares.

Antes de mais, devem colocar-se algumas reservas à teoria formulada por C. Roth de que os pais de Abraão Usque teriam vindo provavelmente de Espanha, em 1492, e de que o apelido Usque deriva do nome da cidade de Huesca[28]. A hipótese de Roth, que nunca foi comprovada documentalmente, tem obtido aceitação com a indicação adicional de Yerushalmi de que é um apelido muitíssimo raro, de que quase não há memória[29]. Sabe-se, presentemente, que não é bem assim. De entre os judeus que viviam em Portugal, em data anterior a 1492, foi possível rastrear onze ocorrências do apelido Usque[30]. Convém assinalar, além disso, que os próprios nomes Abraão e Samuel Usque se encontram mencionados entre os registos:

 

  • 1441Abraão Usque e Gonçalo Gil arrendam as sisas, a dízima de pescado e os serviços real e novo dos judeus de Santiago do Cacém, Sines e Colos por 50.630 reais[31];
  • 1441José Usque e Samuel Usque, na localidade de Santiago do Cacém[32];
  • 1442Isaac Usque, na localidade de Azambuja[33];
  • 1442Jacob Usque, sapateiro em Figueiró[34];
  • 1442Jaque Usque, tecelão, David Usque, alfaiate, e José ben Usque, na localidade de Mértola[35];
  • 1462Samuel Usque e Haim Usque, ourives em Coimbra, recebem privilégios[36];
  • 1490Isaac Usque, na localidade de Olivença [37].

Provou-se recentemente que resulta impossível Abraão ser pai ou irmão de Samuel Usque[38]. Por um lado, é o próprio Abraão quem afirma ser filho de um judeu português chamado Selomoh[39]; por outro, Samuel declara num documento notarial, com a data de 1552, ser «filius quondam Abraham»[40]. Ora, nesse ano, Abraão Usque estava, ao que se sabe, de perfeita saúde. Do cruzamento destes dados resulta, naturalmente, que Abraão e Samuel não podem ser, nem irmãos, nem pai e filho. Eis o ponto actual da situação no que respeita às eventuais relações familiares entre Abraão e Samuel Usque.

Quanto à suposta proveniência dos reinos de Castela ou Aragão, estamos em crer que Duarte Gomes/Salomão Usque e Abraão Usque são judeus portugueses, descendentes de outros que já habitariam em Portugal muito antes de 1492. Não obstante o pai de Abraão Usque ser qualificado como português, não se pode excluir, como é evidente, que os seus antepassados tenham provindo dos reinos vizinhos em tempos mais recuados. Já a situação de Samuel Usque parece ser diferente, pois ele afirma no prólogo da Consolação que os seus antepassados eram provenientes de Castela[41].

 

O tradutor da primeira parte do Canzoniere de Petrarca apresenta-se no frontispício da obra, ora de uma, ora de outra forma, através das variantes «Salomon Usque Hebreo» e «Salusque Lusitano». A alternância entre Hebreo/Lusitano representa, na essência, a  própria natureza de Duarte Gomes como judeu português. A este propósito, convém recordar que os judeus portugueses em diáspora publicam, por regra, os seus livros com a indicação explícita da nacionalidade. Basta recordar os exemplos de Amatus Lusitanus, Manuel Brudus Lusitanus, Didacus Pyrrhus Lusitanus ou Eduardus Pinellus Lusitanus/Abraham Usque Portugues.

Amato Lusitano, cujo nome de baptismo é João Rodrigues de Castelo Branco, constitui um exemplo paradigmático, já que apenas utilizou o nome de baptismo no seu primeiro livro publicado ainda em Antuérpia, em 1536[42]. A partir desta data adoptou para sempre o nome latino Amatus, procedendo à incorporação da menção da nacionalidade no próprio nome, pelo qual passou a ser universalmente conhecido[43].

Julgamos, porém, que há um argumento ainda mais forte para justificar a adopção dos pseudónimos por parte de Duarte Gomes. Os humanistas adoptavam, com frequência, pseudónimos literários para ocultar a sua identidade. As trocas identitárias eram cultivadas sob uma perspectiva essencialmente lúdica que assumia, por vezes, uma relevância e significação muito particular no seio do grupo em que se inseriam os indivíduos. Por vezes, apenas os elementos de um determinado círculo literário conheciam ou eram capazes de reconhecer a identificação da pessoa que se escondia por detrás do pseudónimo. Não é possível, uma vez mais, apresentar melhor testemunho desta prática que o do próprio Amato Lusitano, um judeu português com uma sólida formação humanística. No seu In Dioscoridis, cuja editio princeps veneziana data de 1553, apresenta o seguinte diálogo figurado entre ele e o médico alemão Ioannes Agricola Ammonius:

 

AGRICOLA – Ita certe a commentariis tuis acceperam, in quibus te Ioannem Rodericum Castelli Albi Lusitanum nominatum inueni. Nunc uero quum Amatus potius appellari mauis, in dubium uertebam  an tuum illud esset opus.

AMATVS – Nouum non est uiros rei literariae deditos, sua plerumque immutasse nomina, ut apud Paulum Iouiam, uirum doctissimum, legitur in eo libro, quo de imaginibus doctissimorum uirorum agit.[44]

AGRICOLA – Assim tinha percebido, de facto, a partir dos teus comentários em que te encontrei com o nome de João Rodrigues de Castelo Branco. Mas agora, como antes queres ser chamado Amato, estava em dúvida se era tua aquela obra.

AMATO – Não é novo os homens dados às letras trocarem muitas vezes os seus nomes, tal como se lê na obra de Paulo Jóvio, homem muito douto, no livro em que traça o retrato de varões muito doutos.

 

Note-se o cuidado de Amato em pretender evitar falsas atribuições de autoria ao seu primeiro trabalho de Antuérpia, em virtude de ostentar um nome distinto daquele que mais tarde veio a adoptar. Neste capítulo, mostrou-se bem mais cuidadoso e precavido do que Duarte Gomes, o qual nunca esclareceu, em parte alguma, ser o autor da tradução castelhana do Canzoniere de Petrarca. Amato não tem dúvidas em afirmar que os homens de letras utilizam pseudónimos literários e ilustra essa prática com os exemplos constantes da obra em que Paulo Jóvio faz o retrato da vida dos homens ilustres do seu tempo[45].

O uso de pseudónimos literários constituía, nesta época, uma prática generalizada entre os homens que se dedicavam às letras. O próprio Amato demonstra ter uma consciência perfeita de que assim acontecia com muitos contemporâneos seus. Um outro judeu português, Diogo Pires, começou por adoptar na sua obra o nome Didacus Pyrrhus Lusitanus, mas posteriormente resolveu transformá-lo em Flauius Iacobus Eborensis, que inscreveu, aliás, no frontispício da sua obra-mestra, o Cato Minor, dada à estampa nas duas edições venezianas de 1592 e 1596[46].

A mudança de Diogo em Jacob e de Pires em Flávio não constitui apenas a mera latinização do nome de baptismo, já que se adopta uma onomástica caracteristicamente judaica[47]. A formação marcadamente humanista de Diogo Pires não o impediu, tanto quanto se sabe, de ter abraçado o judaísmo na diáspora, tendo acabado por adoptar também o nome hebraico de Isaia Cohen. Amato Lusitano e Diogo Pires têm em comum com Duarte Gomes o facto de serem judeus portugueses e humanistas, além de terem sido colegas do feitor de D. Grácia Nasci no Estudo de Salamanca.

Há também outros humanistas italianos, com quem Duarte Gomes travou relações muito próximas, que demonstram um verdadeiro prazer, não apenas na simples utilização de pseudónimos, mas no seu uso deliberado como parte integrante de um jogo literário. A ocultação da identidade é uma forma de atingir determinados objectivos, em particular junto dos membros de um grupo mais ou menos restrito. Duarte Gomes é um elemento destacado de um círculo literário veneziano bastante activo desde meados de Quinhentos, o qual integra, para fazer uso das palavras de Amato, vários nomes de «homens dedicados às letras» tão conhecidos como os de Ludovico Dolce, Ortensio Lando, Girolamo Ruscelli, Alonso Núñez de Reinoso ou Alfonso de Ulloa.

As obras destes autores estão repletas de referências cruzadas que nos permitem verificar que mantêm entre si relações literárias intensas e profícuas, como se depreende, por exemplo, das várias menções elogiosas que fazem, expressamente, uns aos outros, da troca de poemas entre os membros do cenáculo, das dedicatórias com que abrem as suas obras, das relações privilegiadas do grupo com o célebre impressor veneziano Gabriel Giolito de Ferrari, que dá à estampa grande parte das suas obras, ou ainda no tratamento preferencial concedido a determinados autores, temas e géneros literários[48].

De entre os membros deste grupo, outros dois, à semelhança de Duarte Gomes, adoptam pseudónimos literários em algumas das suas obras. Girolamo Ruscelli publica uma obra intitulada Secreti di don Alessio Piemontese, cujas quatro partes foram sendo publicadas com múltiplas reedições durante a vida do humanista italiano. Ruscelli assume o pseudónimo de Alessio Piemontese. Apenas alguns elementos do círculo deviam conhecer a verdadeira identidade do autor, que viria a ser revelada unicamente após a sua morte, ocorrida em 1566. Com efeito, volvido cerca de um ano, veio à luz uma nova edição que retirou o verdadeiro autor dos Secreti do anonimato, porquanto ostentava o seguinte título: Secreti nuoui di marauigliosa virtu’ del signor Ieronimo Ruscelli i quali continouando a quelli di donno Alessio, cognome finto del detto Ruscelli, contengono cose di rara esperienza, & di gran giouamento.

Ortensio Lando é outro dos membros consagrados do círculo literário que revela uma predilecção muito particular pelo uso de pseudónimos literários. De facto, pode considerar-se  um mestre do disfarce e da simulação, um exímio criador de personagens e de cenários fictícios, de tal sorte que não se consegue destrinçar, muitas vezes, entre o autor e as personagens por ele engenhosamente elaboradas[49]. Serve-se, por exemplo, do pseudónimo Philalethes Polytopiensis e publica várias obras anónimas ou em nome de outrem, entre as quais figuram duas recolhas famosas de cartas femininas, publicadas em Veneza, cuja autoria, em geral, lhe é atribuída.

Na primeira dessas recolhas, saída dos prelos de Giolito de Ferrari, Lando aparece apenas como a pessoa que coligiu as cartas femininas[50]. No entanto, o leitor mais atento não pode deixar de se intrigar com o teor de alguns poemas publicados na obra, um deles de Ruscelli, que deixam passar, subtilmente, a ideia de que Lando é o autor das missivas. A atribuição da autoria desta obra a Lando é hoje uma questão pacífica para a crítica[51]. A segunda recolha contém, supostamente, as cartas escritas por Lucrezia Gonzaga[52]. Mas, uma vez mais, Ortensio Lando terá posto em prática um sofisticado jogo de troca de identidades, no decorrer do qual redige, a coberto de completo anonimato, as epístolas em nome da própria Lucrezia Gonzaga. A estratégia parece ter sido tão bem urdida que ainda hoje se discute quem terá sido o autor da obra.

Duarte Gomes leva os jogos de troca de identidades tão do gosto de Lando ou de Ruscelli até aos limites da imaginação. A verdade é que trocar de identidade ou possuir vários nomes não é apenas um mero jogo literário para Duarte Gomes, à semelhança do que acontece com os autores italianos. Apresentar-se como «Hebreo» ou como «Lusitano», como judeu ou como cristão, como David Zaboca ou como Duarte Gomes, era um jogo bem real e não isento de perigo, que Duarte Gomes era obrigado a pôr em prática todos os dias da sua existência, tal como a generalidade dos judeus portugueses.

 

Duarte Gomes revela uma subtileza a toda a prova ao adoptar dois pseudónimos que vai usando um pouco indistintamente na sua obra. É como se quisesse continuar na sua criação literária os jogos de dissimulação por que tinha de passar na vida real. Mas não era suficiente. Faltava alguma coisa mais, para que jogo e realidade se confundissem numa teia intrincada em que ele próprio, Duarte Gomes, e o seu alter-ego, Salomão Usque ou Salusque, dialogassem entre si.

O facto de ter sido publicado um poema de Duarte Gomes no início da tradução de Petrarca é, temos de convir, o supremo jogo da simulação em que o autor real aparece numa obra da autoria de um seu heterónimo. É, de facto, assinalável e revela bem a genialidade deste autor. É, por isso, perfeitamente justificada a apresentação integral do soneto que Duarte Gomes endereçou a Salusque Lusitano:

 

DEL SEÑOR DVARTE GOMEZ,
AL EBRO, RIO FAMOSO
en España.

 

GOZATE sacro Ybero, qu’has estado,

Dos siglos con tus ninfas, desseoso

De oyr el cantar graue y amoroso

D’el Toscano Poeta celebrado,

 

Que en riberas del Arno fue criado,

Y à Valclusa venido, valle umbroso,

La vista d’un Laurel verde y hermoso

Lo tuuo luengamente enamorado.

 

Sentiràs pues agora sus concetos,

Càbe tus dulces aguas cristalinas

En muy lindo Romance Castellano.

 

En el qual, ya nos hablan los Sonetos,

Canciones, Mandriales y Sextinas

Merced del buen SALVSQUE LUSITANO.[53]

 

O «Señor Duarte Gomez» enaltece com grande generosidade a tradução em romance castelhano de «Salusque Lusitano». Duarte Gomes dispõe as peças do jogo de forma magistral, ao colocar o seu nome em posição de destaque, a abrir o título da composição, que se fecha, precisamente, com as graças à figura do suposto tradutor, Salusque Lusitano. Mas, a arte refinada de Gomes assoma, de forma quase imperceptível, por detrás da pequena palavra que precede o nome do tradutor. Sob o qualificativo ‘buen’ não será muito difícil vislumbrar o sorriso matreiro do ‘bom’ Duarte Gomes e de todos aqueles que estavam a par de tão sofisticado jogo.

Este soneto de Duarte Gomes está precedido da interessante dedicatória firmada por «Salusque Lusitano», em Veneza, no dia 8 de Agosto de 1567. Nesse texto, Salomão Usque afirma, com justificado orgulho, ser o primeiro a concluir com sucesso uma «Obra en la verdad de muchos desseada, de pocos emprendida, y de ninguno hasta agora acabada.»[54]. Parece travar-se uma espécie de diálogo circular entre Salusque Lusitano e Duarte Gomes, entre a figura da criação literária e a do próprio criador, que logo a seguir é reeditado no soneto de Duarte Gomes; desta feita, os papéis invertem-se, pois agora é o criador que elogia com grande generosidade, como talvez fosse de esperar, a sua própria criação.

Compreende-se assim perfeitamente aquilo que G. Zavan designou, ainda que com muitas reservas, como «Un raro esempio de generosità letteraria»[55]. De facto, não seria muito crível, se fossem pessoas distintas, que Salusque não soubesse que Duarte Gomes era um tradutor talentoso de Petrarca, tal como Amato e Ruscelli já o haviam explicitado de forma clara; do mesmo modo, também não seria facilmente compreensível a excessiva generosidade materializada no soneto com que Duarte Gomes elogia a tradução do seu suposto compatriota.

 

Duarte Gomes é, decerto, uma figura central neste círculo literário veneziano. O humanista português funciona como uma espécie de elo de ligação privilegiado entre os vários elementos do círculo literário e a presença tutelar e mecenática da Casa Mendes-Benveniste, personificada nas figuras de Beatriz de Luna, alias Grácia Nasci, e de João Micas, alias Joseph Nasci. O feitor de confiança de Beatriz de Luna não era apenas um óptimo gestor, um homem de decisão rápida e de grande visão, enfim, um mercador consagrado e respeitado por todos. Além de reunir na sua pessoa todas estas qualidades, já por si assinaláveis, era também um indivíduo com uma cultura vastíssima, com múltiplas e distintas actividades, com um gosto acentuado pela literatura, sobretudo pela poesia. Trata-se, de facto, de uma figura extraordinária a vários níveis, que se move com enorme à-vontade no meio político, financeiro, cultural e literário de Veneza e de Ferrara de meados de Quinhentos.

Os elementos do círculo literário tinham, seguramente, a consciência perfeita de que Duarte Gomes era uma figura invulgar. Ludovico Dolce, Girolamo Ruscelli e Alfonso Ulloa, em várias obras, tecem-lhe rasgadíssimos elogios, não só às qualidades humanas, mas também à vasta cultura e ao enorme talento do poeta lusitano. Cada um deles dedica ao poeta-mercador uma das suas obras[56]. Além do soneto publicado na tradução castelhana da obra de Petrarca, a que já se aludiu, é forçoso referir também a publicação de um outro poema de Duarte Gomes numa colectânea poética organizada por Girolamo Ruscelli em honra de Joana de Aragão[57].

Como tem sido observado, talvez possa admitir-se algum interesse por parte dos membros do grupo em cair nas boas graças de Duarte Gomes, que podia financiar do seu próprio bolso a publicação das suas obras. Além disso, também se conjectura que o mercador português teria interesse em se inserir no meio cultural veneziano para assim ganhar mais credibilidade e notoriedade. Com efeito, não é de excluir que o estabelecimento de uma relação próxima com um dos principais feitores de D. Grácia Nasci possa ter constituído, para alguns dos escritores, um passo decisivo no sentido de obter o alto patrocínio da própria Casa Mendes-Benveniste.

No entanto, Duarte Gomes não era apenas um simples agente comercial da inteira confiança de D. Grácia Nasci, de quem era também médico particular[58]. Não restam dúvidas de que este judeu português era, de facto, um indivíduo excepcional com uma cultura e uma formação humanística do mais alto nível. Trata-se de alguém que elevou bem alto o seu nome junto dos círculos mais restritos do poder e da cultura durante os anos da década de trinta passados em Lisboa, a quem coube a distinção singular de proferir a habitual oração latina de sapiência, na Universidade de Lisboa, na abertura solene do ano lectivo de 1535[59].

Os membros da família Mendes-Benveniste, tal como os dirigentes da Nação Portuguesa, em geral, conheciam forçosamente o mérito do seu agente comercial enquanto humanista consagrado. Duarte Gomes estava bastante próximo de Beatriz de Luna e de João Micas, que o respeitariam tanto pelas suas reconhecidas aptidões para a administração dos negócios, como também por ser um verdadeiro homem de cultura e das letras. Por isso, é muito provável que Duarte Gomes tenha tido um papel de extraordinária importância na orientação dada à actividade mecenática dos Mendes-Benveniste. Não parece muito plausível, dadas as circunstâncias, que Beatriz de Luna ou João Micas patrocinassem a publicação da obra de um determinado autor ou favorecessem mesmo um género literário particular, sem ouvir primeiro a opinião credenciada de Duarte Gomes, uma espécie de conselheiro cultural da família. O respeito de João Micas por Duarte Gomes encontrava-se ainda reforçado pelo facto de este ter sido, à semelhança do pai daquele, o Doutor Agostinho Micas, um distinto lente da Universidade de Lisboa.

Beatriz de Luna e o seu sobrinho, João Micas são figuras a quem vários elementos do círculo literário veneziano enaltecem por meio de dedicatórias ou de referências laudatórias nas suas obras[60]. Alonso Núñez de Reinoso, como é sabido, dedica a João Micas a sua novela La historia de los amores de Clareo y Florisea y de la sin ventura Isea, publicada em 1552, nos prelos de Gabriel Giolito de Ferrari[61]. No mesmo ano, este impressor dá também à estampa uma obra de Ortensio Lando com duas dedicatórias dirigidas aos sobrinhos de D. Grácia Nasci, ou seja, a João Micas, alias D. Joseph Nasci (que se tornou mais tarde duque de Naxos), e ao irmão Bernardo Micas, alias D. Samuel Nasci[62]. O mesmo livro inclui também um poema «Del S. Alphonso Nunnez, de Reynoso al S. Hortensio Lando» (p. 56). Este autor dedica ainda uma outra obra a D. Beatriz de Luna, a qual contém uma carta laudatória do seu amigo Girolamo Ruscelli, com a data de 27 de Abril de 1552, endereçada também «Alla molto illustre et honoratissima S. la S. D. Beatrice de Luna[63]. Da mesma forma, entre as Lettere de Lucrezia Gonzaga, a que já se aludiu, há uma carta, datada de 12 de Maio, dirigida a João Micas[64].

As Lettere funcionam, por certo, como parte de um elaborado jogo literário e, como já foi notado, são essenciais para ajudar a compreender as relações entre Lando, os Mendes-Benveniste e Núñez de Reinoso. No que a este último diz respeito, deve mencionar-se ainda a existência de uma Lettere, com a data de 15 de Junho, onde aparece uma breve nota de agradecimento a Reinoso pela sua contribuição poética para a obra Due panegirici de Lando[65].

A troca de poemas entre os membros do grupo literário, de que Duarte Gomes é figura destacada, é uma constante. Girolamo Ruscelli contribui também com um soneto, sob o título «Di M. Lodovico Dolce in lode del Segnor Alphonso Nuñez de Reinoso», o qual saiu publicado na obra poética de Reinoso logo a seguir à dedicatória dirigida «al mismo Señor Juan Micas»[66].

Não se trata, porém, do único membro do grupo literário veneziano a contribuir com uma composição para o livro de Reinoso. A obra lírica de Reinoso apresenta também um longo poema, em língua castelhana, da autoria de Tomás Gomes intitulado «Al Sennor Alonso Núnnez de Reynoso, un amigo y servidor», a que depois se segue um poema-resposta do próprio Reinoso sob a designação «Alonso Núnnez de Reynoso al Sennor Thomás Gómez. Respuesta».

A identificação deste misterioso poeta tem ocupado alguns dos investigadores que mais têm estudado a obra de Reinoso sem, no entanto, ter sido encontrada uma resposta definitiva para a questão[67]. Neste momento, estão reunidas as condições para determinar com precisão a identidade desta misteriosa figura, que se apresenta como amigo chegado de Reinoso e profundo conhecedor das suas andanças e desventuras. Trata-se do judeu português Tomás Gomes que é, comprovadamente, um dos três irmãos de Duarte Gomes[68]. É assim possível concluir, de alguma forma, que Tomás Gomes pertencia também ao círculo literário veneziano, do qual o seu irmão era figura destacada.

 

Não é por demais recordar, porém, que a família dos Mendes-Benveniste, sobretudo Beatriz de Luna e João Micas, não concede o seu alto patrocínio unicamente ao círculo literário veneziano, onde Duarte Gomes é figura de proa. De facto, constitui-se em Ferrara, também por meados do século XVI, um outro círculo literário com actividade editorial própria, extremamente activo, encabeçado pela figura de Abraão Usque, alias Duarte Pinel. Havia contactos frequentes entre alguns membros do grupo de Veneza e de Ferrara, tanto mais que muitos deles eram judeus portugueses e velhos companheiros no longo caminho, que os tinha trazido desde as terras lusitanas até às italianas. O próprio Duarte Gomes viveu algum tempo em Ferrara e, não obstante a sua fixação em Veneza como feitor de D. Grácia, deslocava-se com frequência ao Ducado Estense, onde era figura bastante respeitada, a ajuizar pelos testemunhos prestados nos seus dois processos no S. Uffizio di Venezia.

A actividade mecenática dos Mendes-Benveniste não se restringia ao círculo veneziano, pois também se fazia sentir, quase em simultâneo, sobre as actividades e as publicações do grupo de Ferrara. O exemplo mais paradigmático deste patrocínio está materializado na dedicatória a D. Beatriz de Luna, inscrita na obra-prima saída da tipografia de Abraão Usque – a monumental Bíblia de Ferrara[69]. Um segundo exemplo também bastante significativo é o da Consolação às Tribulações de Israel dedicada por Samuel Usque «A illustrissima Senhora Dona Gracia Nasci»[70]. O autor não esconde a sua grande admiração por D. Grácia que considera ser o esteio da Nação Portuguesa:

 

 Sendo o meu primeiro yntẽto servir cõ este piqueno ramo de fruta nova a nossa naçaõ Portuguesa, era justo offerecelo a Vossa Excelẽcia como ao coraçaõ deste corpo pois nos remedios que aveis dado sentistes e ynda sentis seus trabalhos mais que algũ outro.[71]

 

O próprio Amato Lusitano também dirige a sua Curationum Medicinalium Centuria Quinta a D. Joseph Nasci, através de uma carta dedicatória, muito sentida, em que relata como perdeu a totalidade dos seus haveres na apressada fuga para Pesaro, após o início do terrível processo que culminou com a morte de dezenas de judeus portugueses nos tristemente célebres autos-de-fé de Ancona. Além disso, nessa mesma carta, o médico e humanista albicastrense afirma ainda ter feito uma tradução de Eutrópio, «in linguam Hispanam», dedicada, de igual modo, ao sobrinho de D. Grácia, da qual não se conhece exemplar algum.

É fácil de ver que se albergam debaixo da protecção e do patrocínio dos Mendes-Benveniste, quer os membros do círculo de Veneza, quer os de Ferrara. Já se constatou que Duarte Gomes é uma figura central no grupo de Veneza e que mantinha, evidentemente, contactos frequentes com os elementos de Ferrara.

 

A comparação da actividade editorial dos dois grupos retrata na perfeição uma das realidades mais complexas da criação literária portuguesa do século XVI – o bilinguismo português-castelhano, que extravasou as fronteiras de Portugal, na companhia de algumas das suas mais ilustres figuras[72].

Os judeus portugueses que se viram forçados a abandonar o país, sobretudo a partir da década de trinta, não levaram consigo apenas uma vaga recordação da pátria. Com eles partiam também, nas urcas saídas do Tejo, uma cultura e uma língua que estava a despontar nos alvores de Quinhentos para as mais perfeitas realizações literárias, de que a epopeia camoniana viria a ser o modelo indiscutível.

No entanto, sobretudo desde o século XV, alguns dos mais consagrados escritores portugueses, com especial incidência para os poetas, compõem as suas obras, tanto em português, como em castelhano, num movimento gradual que se vai acentuando ao longo do século XVI, cujo ponto culminante é, em consequência do trágico desaparecimento de D. Sebastião em Álcacer-Quibir, a própria união ibérica ocorrida em 1580. Concretizava-se, então, aquele que fora um dos sonhos mais acalentado por D. Manuel, em nome do qual se deu a expulsão dos judeus de Portugal e a conversão geral.

As intensas e constantes relações entre os reinos ibéricos criaram em Portugal, durante décadas, uma corte bilingue, que potenciou naturalmente o bilinguismo revelado por alguns dos nossos maiores escritores dos séculos XV e XVI. O meio universitário constituiu um outro factor determinante neste fenómeno, porque inúmeros alunos e professores portugueses frequentavam as mais reputadas universidades espanholas, de entre as quais Salamanca era, nessa época, a mais conceituada. Do mesmo modo, também eram chamados a leccionar em Portugal mestres vindos de Espanha. Os cristãos-novos portugueses que pretendiam obter formação superior repartiam-se, em grande medida, por duas instituições: a Universidade de Lisboa/Coimbra e a de Salamanca.

Já vários poetas do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, publicado em 1516, compunham os seus poemas em português e castelhano, o mesmo acontecendo com nomes consagrados da literatura portuguesa como Gil Vicente, Sá de Miranda, Pero de Andrade Caminha, Diogo Bernardes ou mesmo Camões. Outros havia que se revelaram defensores intransigentes da língua portuguesa como Fernão de Oliveira, João de Barros, Jerónimo Cardoso ou António Ferreira, ou que apenas escreveram na sua língua materna, como sucede com Bernardim Ribeiro. Ao invés, Jorge de Montemor é o exemplo perfeito daqueles que adoptaram o castelhano como a língua base de expressão literária[73].

Os cristãos-novos portugueses, enquanto escritores, não estavam decerto imunes a este confronto linguístico que se travava no plano da produção literária portuguesa. Os autores estavam muitas vezes condicionados por múltiplos e complexos factores a ponderar o uso do português ou do castelhano, numa decisão nem sempre fácil que podia decorrer, entre outras razões, da tradição do próprio género literário escolhido, do público a quem se destinava a obra ou, tão-só, da competência linguística do autor. O bilinguismo vai colocar-se também ao nível da tradução de obras escritas originalmente em outras línguas como o latim ou o italiano.

Assim se pode compreender, por exemplo, a escolha do castelhano por parte de Duarte Gomes na maior parte da sua produção poética e, em particular, na tradução do Canzoniere de Petrarca. Por detrás da opção evidente de Duarte Gomes pelo castelhano encontra-se, seguramente, este confronto linguístico-literário que há muito se vivia em Portugal. Acresce ainda que o tradutor tinha estudado muitos anos no Estudo de Salamanca, como ele próprio comprova com a apresentação dos títulos dos bacharelatos em Artes e Filosofia, e Medicina, transcritos in extenso no seu processo veneziano, pelo que o castelhano não era para ele propriamente uma língua desconhecida. Por último, é forçoso considerar ainda que o número de leitores potenciais de uma tradução castelhana de Petrarca seria bem maior do que de uma tradução portuguesa, pois o castelhano era, à época, uma língua indiscutivelmente mais prestigiada e falada do que o português.

Os judeus portugueses dos círculos literários de Veneza e de Ferrara carregam consigo a velha questão do bilinguismo português-castelhano, que assumiria ainda mais agudeza para aqueles que eram descendentes de judeus castelhanos. Há uma orientação linguística diferenciada nos dois grupos, porquanto o de Duarte Gomes adopta quase em exclusivo o castelhano nas suas obras, com excepção dos autores italianos, enquanto Duarte Pinel, em Ferrara, dá à estampa livros em castelhano, português e, sobretudo, em hebraico[74].

O predomínio do castelhano no círculo de Veneza é visível na obra de Duarte e Tomás Gomes, de Alonso Núñez de Reinoso e ainda na fecunda produção de Alfonso de Ulloa, que traduz inúmeras obras do castelhano e do português[75] ao italiano e, vice-versa, do italiano ao castelhano. Do lado de Ferrara, continua a verificar-se, em grande medida, a adopção do castelhano, mas pressente-se, em parte, uma orientação linguística distinta de alguns autores, em defesa da língua portuguesa. Esta defesa do português parece estar na base da publicação de duas das mais importantes obras da literatura portuguesa do século XVI: a Consolação às Tribulações de Israel de Samuel Usque e a História de Menina e Moça, do enigmático Bernardim Ribeiro[76], à qual se juntou a Egloga de Cristouam Falcam chamada Crisfal.

Não deixa de ser curioso assistir à reedição deste antigo confronto linguístico em terras italianas, que não passa, aliás, desse campo, como não deve deixar de ser sublinhado. No fundo, o bilinguismo português-castelhano que emerge da literatura portuguesa de Quinhentos transferiu-se, em plena década de cinquenta, para Veneza e Ferrara. Afinal, também para lá haviam ido algumas das mais notáveis figuras da cultura e da literatura portuguesas.

Samuel Usque apresenta-se como um dos defensores da valorização da língua materna como língua literária. Opta deliberadamente por redigir a sua Consolação às Tribulações de Israel em português, apesar das fortes pressões de alguns que o tentaram convencer a adoptar o castelhano. É o próprio autor que dá conta disso mesmo, de forma clara e inequívoca, no final do prólogo dirigido «Aos Senhores do Desterro de Portugal»:

 

          Algũs señores quiserom dizer antes que soubesem minha razam, que fora milhor auer cõposto em lingoa castelhana, mas eu creo que nisso nam errey, por que sendo o meu principal yntento falar cõ Portugheses e representando a memoria deste nosso desterro buscarlhe per muitos meos e longo rodeo, algum aliuio aos trabalhos que nelle passamos, desconueniente era fugir da lingua que mamey e buscar outra prestada pera falar aos meus naturais.[77]

 

Não nos surpreenderia que, entre os ‘Senhores’ que quiseram convencer Samuel Usque a escrever em castelhano estivessem alguns dos elementos do círculo de Veneza, em particular o próprio Duarte Gomes. As palavras transcritas são bastante claras. No entanto, têm dado azo a algumas conclusões precipitadas sobre o predomínio do castelhano sobre o português e sobre a assunção do castelhano «como lingua principale della diaspora sefardita» as quais, em nossa opinião, devem ser relativizadas, sobretudo no que toca às comunidades ponentinas[78].

Na realidade, Samuel Usque afirma claramente que não vai prescindir da língua materna, que é utilizada pelos seus naturais, para usar uma língua emprestada, ou seja, não vai abdicar do português para usar o castelhano. A literatura em língua castelhana alcançou, como se disse, grande difusão em toda a península, acentuada em Portugal pela questão do bilinguismo literário. Não se estranha, por isso, que os cristãos-novos portugueses dominassem na perfeição a língua e a literatura castelhanas. Duarte Gomes e Abraão Usque demonstram-no, em concreto, ao usar esse idioma nas suas obras, e Samuel Usque deixa-o entender perfeitamente, quando admitiu como exequível a hipótese de ter escrito a Consolaçam em castelhano.

O bilinguismo português-castelhano é uma questão que, em Portugal, nunca se colocou quanto à língua comum de comunicação, mas apenas no âmbito da criação literária. E, com certeza, não se colocava também aos milhares de judeus portugueses que constituíam as comunidades sefarditas de Antuérpia, Ancona, Ferrara ou Veneza. Já o mesmo se não pode dizer, porém, em relação à língua adoptada nos textos de pendor literário e religioso.

A questão do bilinguismo castelhano-português coloca-se directamente no caso das obras literárias, que oscilam entre uma e outra língua. A adopção quase generalizada do castelhano, em detrimento do português, na tradução da Bíblia de Ferrara e nos livros de orações publicados em Ferrara ou em Veneza representa, quiçá, o problema mais complexo, para o qual têm sido aventadas algumas respostas[79]. Deve sublinhar-se, no entanto, a existência de livros de orações manuscritos também em língua portuguesa, dos quais se conhecem alguns exemplos à guarda da Biblioteca Comunale de Piacenza, da British Library e da Biblioteca Rosenthaliana[80].

As comunidades sefarditas italianas, que se constituem no decorrer do século XVI, são constituídas, como é sabido, em grande medida por judeus originários de Portugal. Aqui estão incluídos, evidentemente, os membros da significativa comunidade judaica que há séculos vivia no país e também o contingente de judeus provenientes sobretudo de Castela e de Aragão, que entrou em território nacional após a ordem de expulsão de Espanha, em 1492. Estes últimos foram-se integrando no novo país de acolhimento, onde viveram, em relativa paz, durante mais de quatro décadas.

As comunidades sefarditas italianas apenas começam a ganhar uma expressão numérica já significativa, grosso modo, a partir de finais da década de trinta, com a chegada de milhares de pessoas que seguiram o mesmo caminho difícil que Samuel Usque experimentou e tão bem descreveu (Portugal–Antuérpia–Lombardia–Veneza/Ancona/Ferrara). São estes, em suma, os portugueses a quem Samuel Usque se dirige na língua que é tanto sua como deles.

A fuga maciça de Portugal a caminho de Antuérpia apenas teve início em meados da década de trinta, quando já decorriam na Cúria Romana as duras negociações para o estabelecimento da Inquisição em Portugal, na presença dos representantes de D. João III, do Papa e dos cristãos-novos. Nesse momento, tinham decorrido já cerca de quarenta anos, desde a chegada dos judeus de Espanha, em 1492, e muitos dos seus descendentes tinham nascido e crescido em Portugal, tendo adoptado o português como língua materna.

Não restam dúvidas, portanto, de que os numerosos membros da Nação Portuguesa estabelecidos em Ancona, Ferrara ou Veneza falavam entre si correntemente em língua portuguesa e não numa outra prestada, para usar as palavras de Samuel Usque, que demonstra uma leitura perfeita da situação[81]. Essa era a língua materna da grande maioria dos que integravam as comunidades sefarditas de Inglaterra, Países Baixos e Itália. Era também essa a língua com que D. Grácia se dirigia aos seus naturais, quer fossem familiares ou simples compatriotas. A língua que levaram de cá aqueles que partiram para Londres, Antuérpia, Ancona, Ferrara ou Veneza, foi, inquestionavelmente, a portuguesa.

 

Por outra parte, deve notar-se que, seja em Veneza, seja em Ferrara, existe a mesma predilecção pela poesia bucólica e pela novela sentimental, géneros que já eram cultivados pelos poetas lusitanos, tanto em português, como em castelhano[82]. De uma parte, temos a obra de Reinoso, em castelhano, e de outra, como que em contraponto, a de Bernardim, em português. A publicação tanto da obra de Reinoso, em Veneza, nos prelos de Giolito, como da de Bernardim, em Ferrara, nos de Abraão Usque, não se terá ficado a dever, decerto, a um mero acaso[83]. O bucolismo adquire também uma importância indesmentível na Consolaçam de Samuel Usque, quanto mais não seja porque a estrutura da obra assenta sobre um diálogo pastoril[84]. O mesmo se deve dizer, com mais propriedade ainda, da Egloga de Cristouam Falcam chamada Crisfal, impressa em conjunto com a obra de Bernardim. A propensão para cultivar ou privilegiar estes géneros nas traduções é também extensível aos demais elementos do círculo literário de Veneza.

 

            A obra-prima saída dos prelos de Abraão Usque foi, sem dúvida, a monumental edição, em 1553, da magnífica Bíblia de Ferrara, «traduzida del Hebreo palavra por palavra» em castelhano, língua que detinha, à época, muito mais prestígio do que o português e, naturalmente, um público potencial bem mais numeroso. No entanto, por detrás da edição da Bíblia, encontram-se quatro judeus portugueses, a saber, Duarte Pinel (Abraão Usque), Álvaro de Vargas (Yomtob Atias), Jerónimo de Vargas[85] e, na fase inicial do processo, Diogo Pires (Isaia Cohen)[86].

 

 

 

 

Frontispício da Bíblia de Ferrara, saída dos prelos de Abraão Usque, em 1553

(Uma nau, em meio de mar encapelado, ostenta no cimo do mastro a esfera armilar)

 

Nos primeiros dias de Novembro de 1551, Diogo Pires dirige-se ao Duque Ercole II, em conjunto com Jerónimo de Vargas, no sentido de lhe recordar o privilégio que lhes havia sido concedido de publicar «libri massime spagnoli». Nessa ocasião, manifestam ao Duque a intenção de vir a publicar a famosa Bíblia de Ferrara, da qual Diogo Pires pode ser considerado, justamente, co-editor. A publicação teve, no entanto, alguns contratempos, de que resultou um litígio judicial entre os dois promotores da edição e os tipógrafos, acusados de não cumprirem os prazos acordados para a execução do trabalho.

Recorde-se que D. Beatriz de Luna se encontrava em Ferrara desde os primeiros meses de 1549, na companhia da filha e de inúmeros colaboradores, tendo a seu cargo a direcção dos negócios da família. No momento em que a Bíblia vê, por fim, concluída a sua edição, em Março de 1553, já a protectora da Nação Portuguesa, estava estabelecida em Constantinopla, onde chegara no Verão de 1552. A Bíblia de Ferrara foi dedicada, como se sabe, à «muy magnifica Señora Doña Gracia Naci» e ao Duque Ercole II[87].

Nos primeiros dias de Dezembro de 1552, Diogo Pires e Jerónimo de Vargas voltam a dirigir-se ao Duque de Ferrara, dando conta dos vários problemas judiciais tidos com os tipógrafos a quem haviam encarregado da publicação da Bíblia. Cerca de quatro meses mais tarde, em Março de 1553, é ultimada a publicação dos primeiros exemplares. O humanista eborense, porém, desaparece misteriosamente de cena, não voltando o seu nome a aparecer relacionado com a edição da Bíblia.

Na verdade, Diogo Pires viajou, pouco antes, para Inglaterra, porque se encontrava, em Londres, na companhia de dois irmãos seus, no ano de 1554, mais precisamente por ocasião do casamento da rainha Maria Tudor, filha de Henrique VIII, com Filipe, filho de Carlos V, que viria a ser coroado, em 1556, como o futuro rei de Espanha, Filipe II. O casamento régio teve lugar no dia 25 de Julho de 1554[88].

Julgamos que Diogo Pires, nestes anos, terá mesmo desempenhado um papel destacado na divulgação das obras dadas à estampa, em Ferrara, pelo impressor Abraão Usque. De facto, em 1554, cerca de um ano após a publicação da Consolação às Tribulações de Israel, esta obra encontra-se já nas mãos dos cristãos-novos portugueses estabelecidos em Bristol e Londres, onde residia em permanência um irmão de Diogo Pires, chamado Simão Henriques, alias Caim Cohen. Além disso, temos notícia de que este costumava receber de Itália publicações destinadas aos seus correligionários. Pelo caminho inverso ao que percorriam os tecidos do norte da Europa até Ancona–Ferrara, chegavam até às comunidades judaico-portuguesas de Antuérpia e de Inglaterra as obras que saíam a lume, em Ferrara, dos prelos de Abraão Usque.

O processo de tradução e edição da Bíblia de Ferrara, da língua hebraica para a castelhana, pela sua dificuldade, exigência e dimensão, envolveu necessariamente um grupo de especialistas, que nunca é identificado em parte alguma da obra. O autor anónimo do prólogo «Al letor», decerto o próprio Duarte Pinel, afirma ter recorrido com regularidade a «sabios y experimentados letrados de la misma lengua assi Hebrayca como Latina», para dar forma à tradução. Do mesmo modo, o cólofon da obra revela que «[...] se acabo la presente Biblia en lengua Española traduzida dela verdadera origen Hebrayca por muy excelentes letrados: con yndustria y deligencia de Duarte Pinel Portugues [...]».

Urge, por conseguinte, procurar dar resposta, na medida do possível, a uma questão central, ou seja, a de saber quem foram os homens capazes de levar a cabo esta obra magnífica. Como tem sido justamente acentuado, Duarte Pinel desempenhou, com toda a certeza, um papel de suma importância na execução e gestão deste grandioso projecto, pelo qual deu o próprio nome[89]. Convém ter presente que Duarte Pinel é um homem com uma sólida formação humanística comprovada, ainda durante a sua permanência em Portugal, pela publicação de uma gramática latina da sua autoria, a que se segue um pequeno tratado sobre as calendas, saída a lume, em 1543, dos prelos de Luís Rodrigues, em Lisboa[90].

Trata-se de um indivíduo com uma formação de nível superior (obtida muito provavelmente em Lisboa ou Salamanca), porquanto recebe o tratamento de Bacharel, num processo que lhe foi movido, em finais de 1541, na Inquisição de Lisboa[91]. Duarte Pinel desempenhava, à época, as funções de professor de latim, na capital do Reino, tendo por discípulos inúmeros jovens que pretendiam exercitar-se na língua latina. A gramática parece ser fruto dessa experiência docente e constituía-se, então, como um verdadeiro instrumento de ensino, para todos quantos desejassem estudar a língua do Lácio.

Diogo Pires empenhou-se, pessoalmente, no processo inicial da edição da Bíblia, antes da sua partida para Inglaterra. O seu nome, porém, acabou por não ser gravado nos exemplares da obra. No entanto, estamos convictos de que a participação do humanista eborense terá ultrapassado em muito os contactos prévios que estabeleceu, na companhia de Jerónimo de Vargas, com o Duque Ercole II. Não será excessivo dizer que é um dos mais talentosos poetas novilatinos, o qual havia, aliás, publicado em Ferrara, em 1545, o seu primeiro livro de poemas, para não referir as inúmeras composições suas que foram sendo publicadas nas obras dos ilustres membros do círculo literário de Lilio Gregorio Giraldi, em que estava inserido.

À semelhança de Duarte Pinel, o humanista eborense manifestou, desde cedo, o gosto pelo ensino das línguas clássicas aos jovens, para quem preparou igualmente uma obra com uma intenção didáctica declarada, ou seja, o Cato Minor siue Disticha Moralia. Já nos últimos anos da sua vida, Diogo Pires acabou por dedicar esta colectânea poética (o que não deixa de ser curioso), aos mestres-escola da cidade de Lisboa (Ad Ludimagistros Olysipponenses), pois tinha esperança de que os seus dísticos morais pudessem vir a ser utilizados, precisamente em Lisboa, pelos professores que ensinavam a língua latina à juventude, à semelhança do que fizera Duarte Pinel.

Além de ser um profundo conhecedor das línguas e literaturas clássicas, Diogo Pires detinha uma preparação linguística excepcional, pelo que dominaria, com toda a certeza, as mais importantes línguas europeias. Basta lembrar que havia efectuado os seus estudos superiores em Salamanca, Lovaina e Paris e que, antes de chegar a Ferrara, tinha já percorrido uma boa parte da Europa, desde a sua saída de Portugal, em 1535. Tudo leva a supor, pois, que Diogo Pires possa ter sido um dos «sabios y experimentados letrados de la misma lengua assi Hebrayca como Latina» que participou na tradução da Bíblia de Ferrara. Esta hipótese adquire mais força ainda, pelo facto de, neste momento, ser possível afiançar, com base em documentação recém-descoberta, que Diogo Pires dominava também a língua hebraica. Com efeito, na República de Ragusa/Dubrovnik, onde se fixou em começos de 1557, o judeu eborense era chamado, com alguma frequência, a efectuar traduções oficiais e certificadas para italiano, a partir de documentação escrita, na sua origem, em português e hebraico.

Duarte Gomes, como se comprova, era igualmente um humanista consagrado com uma sólida formação e um excelente domínio das línguas clássicas, do português, do castelhano, do italiano, do francês e, com muita probabilidade, do hebraico. O seu brilhante percurso académico como aluno, em Salamanca, Medina del Campo e Lisboa, e também como lente da Universidade de Lisboa, distinguem-no como um dos mais destacados judeus portugueses presentes em Veneza/Ferrara. Além disso, dominava, como poucos, a língua e literatura castelhanas, a ponto de ousar traduzir, pela primeira vez, para esse idioma o Canzoniere de Petrarca[92]. Não foi por acaso que o mercador-poeta, natural de Lisboa, obteve o respeito e o elogio rasgado de eminentes humanistas como Girolamo Ruscelli, Ludovico Dolce, Alfonso de Ulloa ou Amato Lusitano.

No primeiro processo movido pelo S. Uffizio di Venezia a Duarte Gomes, em 1555, apresentaram-se duas testemunhas que, em momentos diversos do julgamento, procuraram fazer crer que o mercador português não sabia hebraico. É evidente que tanto o percurso de Duarte Gomes, como a confirmação da existência de várias obras em hebraico, na sua excepcional biblioteca, vêm sugerir, ao invés, exactamente o contrário[93]. Não obstante haver alguns factos por esclarecer que davam força à acusação, Duarte Gomes acaba por ser absolvido desse processo, graças à providencial intervenção de D. Grácia Nasci junto das autoridades venezianas.

Em resultado de uma busca ordenada pelo Tribunal à casa de Duarte Gomes, foram apreendidos treze livros proibidos. Obtinham, deste modo, confirmação plena as denúncia feitas, nos primeiros dias do processo, pelo jesuíta português, Frei Simão[94]. O conhecimento sumário dos treze livros arrestados dá-nos uma imagem da cultura vastíssima deste humanista português e da riqueza da sua biblioteca, bastante elogiada  por Alfonso de Ulloa[95]. Entre as obras apreendidas, encontram-se o Talmude e dois outros livros em hebraico não identificados, além de Catalogus omnium praeceptorum legis mosaicae «cum alio opusculo in lingua hebrea», e Messias Christianorum et Iudaeorum hebraice et latine, todas da autoria de S. Münster; Enchiridion militis christiani de Erasmo; Enchiridion storiae sacrae Bibliae de G. Fabri; De orbis terrae concordia libri quattuor de G. Postel; Biblia sacra latina de S. Castellion; Liber de anima de Melanchton; «scripta duo adversaria Martini Luteri»; duas traduções castelhanas, a saber, Enchiridion o manual de doctrina christiana e Summa de tutte le cose de mondo, e um outro livro ainda, em francês, não identificado[96].

Na realidade, não nos surpreenderia que Duarte Gomes também houvesse integrado o excepcional grupo de indivíduos, os referidos «sabios y experimentados letrados de la misma lengua assi Hebrayca como Latina», a quem se ficou a dever a tradução da Bíblia de Ferrara. Convém sublinhar que o agente de confiança de Beatriz de Luna e de João Micas, após a conclusão dos seus estudos em Artes e Filosofia, e Medicina, na Universidade de Salamanca, estudou teologia em Medina del Campo, pouco antes de ter regressado a Lisboa, por volta de 1532[97]. Além disso, os livros apreendidos, embora constituam apenas uma pequena amostra do que seria a sua extraordinária biblioteca, revelam um gosto bem marcado por obras de pendor religioso.

 

Duarte Gomes, Duarte Pinel e Diogo Pires ou antes, se preferirmos os respectivos nomes hebraicos, David Zaboca, Abraão Usque e Isaia Cohen, constituem uma espécie de frente avançada daquilo a que entendemos chamar o movimento humanista judaico-português, onde é forçoso também integrar, como é bom de ver, alguns outros nomes, a que se aludiu ao longo deste trabalho. Os três partilham a dupla condição de judeus e portugueses, uma relação difícil, mas profundamente sentida, que marcou para sempre a vida e a obra de cada um deles. Todos possuem, reconhecidamente, uma notável formação humanística, adquirida, em grande medida, antes de terem deixado para trás o país que os viu nascer.

As tribulações do povo hebraico há muito que tinham tido início. A saída de Portugal constituiu, sem dúvida, mais uma penosa etapa, que nem todos cumpriram da mesma forma: das margens do Tejo às margens do Pó, foram muitos e variados, mas nem sempre fáceis de acompanhar, os caminhos trilhados pelos «Senhores do Desterro de Portugal».

 

 

NOTAS

[1] Este artigo foi publicado, na variante do Português do Brasil, em Veredas – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, 6 (2006), pp. 65-108. Entretanto, este trabalho foi enriquecido, em data posterior à da sua publicação, com algumas sugestões, críticas e comentários de Herman Prins Salomon a quem muito agradecemos.

[2] Cf. Herman Prins SALOMON – Aron di Leone LEONI, «Mendes, Benveniste, De Luna, Nasci: the state of the art»: The Jewish Quarterly Review 88, n.º 3-4 (January-April, 1998), p. 148.

[3] Sobre as diversas obras em que foram publicadas as composições de Diogo Pires, tanto em Antuérpia como em Lovaina, veja-se António M. L. ANDRADE, O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do séc. XVI. Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e Culturas, 2005 (dissertação policopiada), pp. 68-71.

[4] Cf. A. L. LEONI, The Hebrew Portuguese Nations in Antwerp and London at the time of Charles V and Henry VIII. New documents and interpretations. New Jersey, Ktav, 2005, pp. 92-93. Ao contrário do que é hábito nos processos da Inquisição portuguesa, os Processi del S. Uffizio di Venezia não contêm uma sessão dedicada à genealogia. A documentação notarial torna-se, por isso, uma fonte quase imprescindível para apurar a composição da família de Duarte Gomes.

[5] H. P. SALOMON – A. L. LEONI, «Mendes, Benveniste, De Luna, Nasci..., op. cit., p. 152.

[6] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, Liv. 56, fls. 302v-306v – «denunciação contra çertos judeus de ferrara».

[7] Trata-se de um irmão do mercador Ludovico Guicciardini que é autor da célebre Descrittione di M. Lodovivo Guicciardini, gentilhuomo fiorentino, di tutti i Paesi Bassi altrimenti detti Germania inferiore. [...]. Anversa, apresso Cristophano Plantino, 1588 (há duas edições anteriores de 1567 e 1581; descreve-se o exemplar da Biblioteca Geral de Coimbra, com a cota R-55-3). Sobre a biografia de Ludovico Guicciardini, cf. D. ARISTODEMO, Dizionario Biografico degli Italiani, s. u. ‘GUICCIARDINI, Ludovico’.

[8] Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 24, fl. 20v [declarações de 31 de Agosto de 1568]; P. C. IOLY ZORATTINI (a cura di), Processi del S. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1561-1570). Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1982, vol. II, pp. 85-86.

[9] Archives Générales du Royaume, Papiers de l’État et Audience 132, 22 de Julho de 1544: Relatório secreto do Conselheiro Corneille Scepperus para a Rainha Maria de Hungria sobre o interrogatório aos Portugueses aprisionados em Antuérpia. Este documento foi apresentado e transcrito in extenso por A. L. LEONI, The Hebrew Portuguese Nations..., op. cit., pp. 92-93; 208-210, doc. 50. Por um erro evidente de transcrição, o escrivão registou no documento «licentie Emmanuel Gomez», com a troca de Duarte por Emmanuel, tal como se comprova pela leitura integral do relatório.

[10] Cf. A. L. LEONI, The Hebrew Portuguese Nations..., op. cit., pp. 122 e 236-237 (doc. 66).

[11] Cf. A. L. LEONI, The Hebrew Portuguese Nations..., op. cit., pp. 94-96; Maria Teresa GUERRINI, «New documents on Samuel Usque, the author of the Consolaçam as tribulaçoens de Israel»: Sefarad 61, fasc. 1 (2001), 83-89.

[12] Cf. L. FRATTARELLI FISCHER,  «Christiani Nuovi e Nuovi Ebrei in Toscana fra Cinque e Seicento. Legittimazioni e percorsi individuali»: P. C. IOLY ZORATTINI (a cura di), L’identità dissimulata. Giudaizzanti iberici nell’Europa Cristiani dell’età moderna. Firenze, Leo S. Olschki Editore, 2000, p. 101.

[13] Cf. L. FRATTARELLI FISCHER,  op. cit., p.103.

[14] Cf. G. ZAVAN, Gli ebrei, i marrani e la figura di Salomon Usque. Treviso, Santi Quaranta, 2004, pp. 81-82. Veja-se a nossa recensão crítica a este estudo publicada em Zakhor – Rivista di Storia degli Ebrei d’Italia 8 (2005), 228-232.

[15] Para uma análise pormenorizada das movimentações dos membros da família Mendes-Benveniste, cf. H. P. SALOMON – A. L. LEONI, «Mendes, Benveniste, De Luna, Nasci..., op. cit., pp. 153-165.

[16] Cf. Renata SEGRE, «La formazione di una comunita marrana: i portoghesi a Ferrara»: VIVANTI, Corrado (a cura), Storia d’Italia. Gli Ebrei in Italia. I. Dall’alto Medioevo all’età dei ghetti. Annali 11. Torino, Giulio Einaudi, 1996, pp. 825-826, nota 118; A. A. BROOKS, The woman who defied kings: the life and times of Doña Gracia Nasi – a Jewish leader during the Renaissance. St. Paul, Paragon House, 2003, pp. 255-256.

[17] Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fls. 133r [26 de Março, 1555]. Cf. P. C. IOLY ZORATTINI (a cura di), Processi del S. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1548-1560). Firenze, Leo S. Olschki Editore, 1980, vol. I, p. 225.

[18] Archivio di Stato di Venezia, not. Paolo Leoncini, busta 7818, fl. 194, Agosto de 1552. Cf. G. ZAVAN, op. cit., p. 82; A. L. LEONI, The Hebrew Portuguese Nations..., op. cit., p. 93, nota 34.

[19] Cf. A. A. BROOKS, op. cit., pp. 292-293.

[20] A obra apresenta o seguinte título: De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas del gran Poeta y Orador Francisco Petrarca, traduzidos de Toscano por Salusque Lusitano [ou, segundo uma outra variante: Salomon Usque Hebreo]. Parte primera. Con breves Sumarios, ò Argumentos en todos los Sonetos y Canciones que declaran la intencion del autor. Compuestos por el mismo. Con dos Tablas, una Castellana y la otra Toscana y Castellana. Con privilegios. En Venecia. En casa de Nicolao Beuilaqua, MDLXVI (consultou-se um exemplar da variante «Salomon Usque Hebreo», da Biblioteca Nacional de Lisboa – RES. 2444 V, e um outro, com a menção «Salusque Lusitano», da Bibliothèque Nationale de France – YD-727).

[21] Remete-se para o recente trabalho de G. ZAVAN, op. cit., que tem o mérito de apresentar, com reconhecida clareza e profundidade, a problemática que envolve os nomes de Duarte Gomes e Salomão Usque, sem tomar, no entanto, uma posição definitiva sobre a questão da identificação. Veja-se, igualmente, os novos dados apresentados em António M. L. ANDRADE «A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português»: M. GONÇALVES et alii (orgs.), Gramática e Humanismo. Actas do Colóquio de Homenagem a Amadeu Torres. Braga, Publicações da Faculdade de Filosofia, 2005, vol. II, pp. 15-25.

[22] Cf. AMATO LUSITANO, Curationum medicinalium [...] centuriae duae, quinta videlicet ac sexta. Venetiis, ex officina Valgrisiana, 1560 [centuria V, curatio XIX]; Girolamo RUSCELLI, Del modo di comporre in versi nella lingua italiana, trattato di Girolamo Ruscelli, Nel quale va compreso vn pieno & ordinatissimo Rimario. Nuouamente mandato in luce. Venetia, appresso Gio. Battista Sessa et Melchior Sessa fratelli, [1558], fl. a5r. Para uma análise minuciosa da longa dedicatória de Ruscelli a Gomes, cf. G. ZAVAN, op. cit., pp. 88-91.

[23] Para uma descrição e análise da generalidade da produção poética atribuível a Salomão Usque, cf. C. ROTH, «’Salusque Lusitano’, an essay in disentanglement»: Gleanings: essays in Jewish History, Letters and Art. New York, Hermon Press, 1967, p. 188 [este trabalho foi publicado pela primeira vez em The Jewish Quarterly Review, n.s., 34 (1943-1944), pp. 65-85]; Y. H. YERUSHALMI, «A Jewish Classic in the Portuguese Language»: Samuel USQUE, Consolação às tribulações de Israel. Edição de Ferrara, 1553, com estudos introdutórios por Yosef Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins. Lisboa, F. C. G., 1989, vol. I, p. 122; H. P. SALOMON, «Samuel Usque et les problèmes de la Consolação às Tribulações de Israel»: Deux études portugaises * Two Portuguese Studies. Braga, Barbosa & Xavier, Lda., 1991, pp. 63-67; G. ZAVAN, op. cit., 117-123.

[24] Cf. Abramo A. PIATELLI, «Ester: l’unico dramma di Leon da Modena giunto fino a noi»: Rassegna Mensile di Israele 34, fasc. I (1968), 163-172. H. P. SALOMON, «Samuel Usque et les problèmes...», op. cit., p. 65, apresenta uma reprodução fotográfica do frontispício da edição de Leon Modena, a partir do exemplar da Biblioteca Nazionale di San Marco, de Veneza.

[25] Comentarios del s. Alonso de Ulloa, de la guerra, que el illustriss. y ualerosiss. principe don Hernando Aluarez de Toledo Duque de Alua, y capitan general del Rey don Felippe n.s. ha hecho contra Guillermo de Nansau Principe de Oranges; y contra el Conde Lodouico su ermano, y otros rebeldes de su Magestad Catolica enlas tierras baxas, que communmente se llaman Flandes. El año MDLXVIII. Venecia, en casa de Domingo de Farris, 1569.

[26] Cristoforo ZABATA (ed.), Della scelta di rime di diuersi eccellenti auttori, di nuouo data in luce, parte prima. Genova, [Antonio Roccatagliata], 1582. C. ROTH, op. cit., p. 195, cita uma edição anterior de 1573. É muito provável que C. Zabata tenha conhecido Duarte Gomes, já que ambos compartilham o gosto tanto pela poesia como pelo mundo dos negócios. Atribui-se geralmente a C. Zabata a autoria de um tratado comercial intitulado Dialogo, nel quale si ragiona de’ cambi, et altri contratti di merci: e parimente delle fere di Ciamberi, e di Trento; ad informatione di tutti coloro, che trattandone desiderano di saper il proprio di tal materia. Genova, appresso Christoforo Bellone F. A., 1573. Cf. Luisa PICCINO, «La riflessione economica en Liguria tra scienza e pratica (secoli XVI-XIX)»: Quaderni della Facultà di Economia dell’Università dell’Insubria, art. 5 (2002), p. 6 (revista electrónica acessível no sítio http://eco.uninsubria.it/Dipeco/Quaderni. Este trabalho foi publicado na revista Storia Economica, vol. IV/II (2001), pp. 279-327).

[27] Esta canção de Salomão Usque, que se encontra manuscrita num códice da Biblioteca Comunale Ariostea de Ferrara, acaba de ser objecto de um estudo e edição crítica por parte de J. CANALS PIÑAS, «Una canción inédita de Salomón Usque»: Sefarad 64, fasc. 1 (2004), 3-25.

[28] C. ROTH, «The Marrano Press at Ferrara, 1552-1555»: The Modern Language Review 38 (1943), 311.

[29] Cf. Y. H. YERUSHALMI, op. cit., 50-51; Ariel TOAFF, «Los Sefardies en Ferrara y en Italia en el siglo XVI»: Iacob M. HASSÁN (ed.), Introducción a la Biblia de Ferrara. Madrid, Comisión Nacional Quinto Centenario, 1994, p. 194; G. ZAVAN, op. cit., pp. 55 e 58.

[30] Recorreu-se ao trabalho notável de Maria José Pimenta Ferro TAVARES, Os Judeus em Portugal no século XV. Volume I[o segundo volume tem o seguinte pé de imprensa: Lisboa, INIC, 1984]. Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, 1982.

[31] IAN/TT, Odiana, liv. 4, fls. 216-217v;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. I, p. 197.

[32] IAN/TT, Chancelaria de D. Afonso V, liv. 2, fl. 56;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. II, p. 339.

[33] IAN/TT, Ibidem, liv. 2, fl. 60v;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. II, p. 393.

[34] IAN/TT, Ibidem, liv. 23, fl. 104;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. II, p. 134.

[35] IAN/TT, Ibidem, liv. 23, fl. 103;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. II, p. 265.

[36] IAN/TT, Odiana, liv. 1, fl. 77v;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. II, p. 54.

[37] IAN/TT, Chancelaria de D. João II, liv. 12, fl. 82v;  M. J. F. TAVARES, op. cit., vol. II, p. 283.

[38] Cf. A. L. LEONI, «A hitherto unknown edition of the Spanish Psalter by Abraham Usque (Ferrara 1554)»: Sefarad 61, fasc. 1 (2001), p. 136; H. P. SALOMON, «O que tem de judaico a Menina e Moça?»: Cadernos de Estudos Sefarditas 4 (2004), 200-201.

[39] Cf. Orden de Roshasanah y Kipur transladado en español y de nuevo emẽdado por yndustria y deligẽcia de Abraham Usque Bẽ Selomoh Usque Portugues y estampado en su casa y a su costa. En Ferrara à 15 d Elul 5313 [=25 de Agosto de 1553].

[40] Archivio di Stato di Ferrara, Notarile Antico, Notario G. B. Saracco, Matr. 534, Pacco 3, fls. 114r-115v. Cf. A. L. LEONI, «A hitherto unknown edition...», op. cit., p. 136.

[41] «E dado caso que a volta ouve muitos do desterro de Castela, e os meus passados daly ajam sido, mais razaõ parece que tenha agora conta com o presente e mayor cantidade».

[42] AMATO LUSITANO, Index Dioscoridis. En, candide Lector, Historiales Dioscoridis campi, Exegemataque simplicium, atque eorundem Collationes cum his quae in officinis habentur nedum medicis, et Myropoliorum Seplasiariis, sed bonarum literarum studiosissimis perquam necessarius opus. Ioanne Roderico Castelli Albi Lusitano autore. Antuerpiae, excudebat vidua Martini Caesaris, 1536.

[43] Amatus parece ter origem na latinização do nome ’Amado’ que é comum na Península Ibérica, sendo também comum entre os judeus sefarditas oriundos do antigo Império Otomano. No entanto, adoptámos a forma Amato por ter sido esta a que ficou consagrada na tradição literária e historiográfica portuguesa.

[44] AMATO LUSITANO, In Dioscoridis Anazarbei de medica materia libros quinque, Amati Lusitani, doctoris medici ac philosophi celeberrimi enarrationes eruditissimae. Lugduni, apud Gulielmum Rouillium, sub scuto Veneto, 1558, p. 230 (liber I, enarratio CLXVI).

[45] Amato refere-se, decerto, à famosa obra do humanista italiano: Elogia virorum bellica virtute illustrium veris imaginibus supposita, quae apud musaeum spectantur. Volumen digestum est in septem libros. Florentiae, in officina Laurentii Torrentini ducalis typographi, 1551.

[46] A esta colectânea poética dedicámos a nossa dissertação de doutoramento, intitulada O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do séc. XVI, Universidade de Aveiro, Departamento de Línguas e Culturas, 2005, cuja primeira parte (pp. 1-134) traça um esboço biográfico de Diogo Pires e da família Pires-Cohen.

[47] Cf. Carlos Ascenso ANDRÉ, «Um Judeu português nos caminhos do mundo»: A. A. NASCIMENTO et alii (eds.), Humanismo para o nosso tempo: homenagem a Luís de Sousa Rebelo. Lisboa, 2004, p. 179.

[48] Para uma análise das relações estabelecidas entre Duarte Gomes e os restantes elementos deste círculo literário, cf. G. ZAVAN, op. cit., 87-93.

[49] A propósito do enorme fascínio de O. Lando pelo uso de pseudónimos e, em geral, pelos sofisticados jogos literários que envolvem a revelação/ocultação da identidade, atente-se nas palavras expressivas de Jacob BURCKHARDT, The civilization of the Renaissance in Italy. New York, Harper & Brothers, 1958, vol. II, p. 336: «Ortensio Landi...is so fond of playing hide-and-seek with his own name, and fast-and-loose with historical facts, that even when he seems to be most in earnest he must be accepted with caution and only after close examination.».

[50] Lettere di molte valorose donne, nelle quali chiaramente appare non esser ne di eloquentia ne di dottrina alli huomini inferiori. Vinegia, appresso Gabriel Giolito de Ferrari, 1548.

[51] Cf. Serenna PEZZINI, «Dissimulazione e paradosso nelle “Lettere di molte valorose donne” (1548) a cura di Ortensio Lando»: Italianistica. Rivista di letteratura italiana 31, n.º 1 (gennaio/aprile 2002), 67-73.

[52] Ortensio LANDO, Lettere della molto illustre sig. la s.ra donna Lucretia Gonzaga da Gazuolo con gran diligentia raccolte, & à gloria del sesso feminile nuouamente in luce poste. Vinegia, [appresso Gualtero Scotto], 1552.

[53] De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas..., fl. a4v. Apresenta-se a transcrição exacta do soneto, tal como foi publicado.

[54] De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas..., fl. a2r.

[55] Cf. G. ZAVAN, op. cit., p. 74.

[56] Ludovico Dolce dedica a Duarte Gomes a sua tragédia La Medea. Vinegia, appresso Gabriel Giolito de’ Ferrari, 1558, cuja dedicatória data de 10 de Outubro de 1557. Girolamo Ruscelli dedica-lhe, a 7 de Setembro de 1558, o tratado Del modo di comporre in versi nella lingua italiana, trattato di Girolamo Ruscelli, Nel quale va compreso vn pieno & ordinatissimo Rimario. Nuouamente mandato in luce. Venetia, appresso Gio. Battista Sessa et Melchior Sessa fratelli, [1558], fl. a1r-a7v. Por seu turno, Alfonso Ulloa traduz para castelhano a obra de João de Barros, L’Asia del s. Giovanni di Barros, consigliero del christianissimo re di Portogallo, de’ fatti de’ portoghesi nello scoprimento, et conquista de’ mari et terre di Oriente. Venetia, appresso Vincenzo Valgrisio, 1561. A dedicatória da segunda década, com a data de 15 de Outubro de 1561, está endereçada a Duarte Gomes. Para uma análise minuciosa das três dedicatórias a Gomes, cf. G. ZAVAN, op. cit., pp. 88-93.

[57] Girolamo RUSCELLI, Il tempio alla diuina s. donna Giouanna d’Aragona, fabricato da tutti i più gentili spirti, & in tutte le lingue principali del mondo. Venetia, per Francesco Rocca, 1565. Cf. C. ROTH, «’Salusque Lusitano’...», op. cit., p. 74; G. ZAVAN, op. cit., p. 93.

[58] Esta indicação deduz-se das próprias declarações de Duarte Gomes no processo que lhe foi instaurado, em 1555, no S. Uffizio di Venezia: «Domandato se esso ha, opur il tempo passato, ha havuto conversation alcuna con la Beatrice de Luna, respose: Hebi per el tempo passato conversation in casa sua perchè io la medicava.». Cf. P. C. IOLY ZORATTINI, Processi...1548-1560, op. cit., p. 232.

[59] Para uma análise minuciosa do percurso académico do notável grupo de cristãos-novos, de que fazia parte Duarte Gomes, no Estudo de Salamanca e de Lisboa, cf. A. M. L. ANDRADE, «A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português», op. cit., pp. 15-25.

[60] Cf. Constance Hubbard ROSE, Alonso Núñez de Reinoso: the Lament of a Sixteeth-Century Exile. New Jersey, Fairleigh Dickinson University Press, 1971, pp. 50-58.

[61] Historia de los amores de Clareo y Florisea, y de los trabajos de Ysea, con otras obras en verso, parte al estilo espanol y parte al italiano, agora nueuamente sachada a luz. Venecia, por Gabriel Iulito y sus hermanos, 1552. O segundo volume, que contém a obra poética, apresenta título próprio: Libro segundo de las obras en coplas castellanas y versos al estilo italiano. Vinegia, appresso Gabriel Giolito de’ Ferrari et fratelli, 1552. Assinale-se que a novela de Reinoso foi traduzida para francês apenas dois anos volvidos, com tradução de Jacques Vincent, saída dos prelos de Kerver, em Paris. Há ainda uma enigmática edição em português, que tem gravado no frontispício: Historia dos trabalhos da sem ventura Isea natural da Cidade de Epheso, & dos Amores de Clareo & Floriseo. Com Real preuilegio. Esta raríssima edição, em caracteres góticos, de que apenas se conhece um único exemplar na Biblioteca da Universidade de Harvard, não apresenta menção alguma de local, impressor ou data. A figura de Alonso Núñez de Reinoso está envolta em grande mistério e deve acentuar-se que quase tudo se ignora sobre a vida deste poeta. Recentemente, a novela de Reinoso foi reeditada por duas vezes, uma por Miguel Angel TEIJEIRO FUENTES (ed.), Los amores de Clareo y Florisea y los trabajos de la sin ventura Isea. [Cáceres], Universidad de Extremadura, 1991; e outra por José JIMÉNEZ RUIZ (ed.), Historia de los amores de Clareo y Florisea y de los trabajos de Isea. Málaga, Universidad de Málaga, 1997.

[62] O. LANDO, Due panegirici nuouamente composti, de’ quali l’uno è in lode della S. Marchesana della Padulla, et l’altro in comendatione della S. Donna Lucretia Gonzaga da Gazuolo. Vinegia, appresso G. Giolito de Ferrari et fratelli, 1552.

[63] O. LANDO, Dialogo di m. Hortensio Lando, nel quale si ragiona della consolatione, et utilità, che si gusta leggendo la Sacra Scrittura. Trattasi etiandio dell’ordine, che tener si dee nel leggerle, et mostrasi essere le sacre lettere di uera eloquenza, et di uaria dottrina alle pagane lettere superiori. Venetia, al segno del pozzo [Andrea Arrivabene], 1552. A carta de Ruscelli encontra-se no final do livro, pp. 60-71, e está dirigida «Alla molto illustre et honoratissima S. la S. D. Beatrice de Luna».

[64] O. LANDO, Lettere..., pp. 264-265.

[65] O. LANDO, Due panegirici..., p. 77.

[66] Sobre a biografia de Ludovico Dolce, cf. M. MUCCILLO, Dizionario Biografico degli Italiani, s. u. ‘DOLCE, Ludovico’.

[67] Veja-se, a este propósito, os importantes trabalhos de Marcel BATAILLON, «Alonso Núñez de Reinoso et les marranes portugais en Italie»: Miscelânea de estudos em honra do Prof. Hernâni Cidade. Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1957, pp. 1-19; e de Eugenio ASENSIO, «Alonso Núñez de Reinoso, “gitano peregrino” y su égloga Baltea»: Estudios Portugueses. Fundação Calouste Gulbenkian – Centro Cultural Português, 1974, pp. 123-144.

[68] Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, 1 de Agosto, 1555. Nas declarações que proferiu neste preciso dia, Duarte Gomes afirma ter três irmãos, cujos nomes cristãos são Guilherme, Tomás e Vicente. Acrescenta que todos eles se encontram, à data das declarações, em Constantinopla, onde julga que vivem abertamente como judeus sob os nomes de Abraham, Ioseph e Iona. Cf. P. C. IOLY ZORATTINI, Processi... 1548-1560, op. cit., p. 230; A. A. BROOKS, op. cit., p. 269.

[69] Cf. R. SEGRE, «Contribución documental a la historia de la imprenta Usque y de su edición de la Biblia»: HASSÁN, Iacob M. (ed.), Introducción a la Biblia de Ferrara. Actas del Simposio Internacional sobre la Biblia de Ferrara (Sevilla, 25-28 de noviembre de 1991). Madrid, 1994, 205-226; A. L. LEONI, «New information on Yomtob Attias co-publisher of the Ferrara Bible»: Sefarad 57 (1997) 271-276. A Comisión Nacional Quinto Centenario (1492-1992), como homenagem aos judeus expulsos de Espanha, em 1492, patrocinou uma edição facsimilada da Bíblia de Ferrara, a partir do exemplar à guarda da Biblioteca Nacional de Madrid.

[70] O próprio Samuel Usque, de quem se ignora o nome de baptismo, havia trabalhado em Antuérpia para Diogo Mendes e, depois da sua morte, para a viúva D. Brianda de Luna com quem mais tarde haveria de se incompatibilizar. Por denúncia da própria Brianda, foi preso em 1549, tendo sido libertado por intervenção de D. Beatriz de Luna. Para uma análise pormenorizada da biografia do autor da Consolação às tribulações de Israel, cf. A. L. LEONI, The Hebrew Portuguese Nations..., op. cit., pp. 94-96; M. T. GUERRINI, op. cit., 83-89.

[71] Samuel USQUE, Consolação às tribulações de Israel. Edição de Ferrara, 1553, com estudos introdutórios por Yosef Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, fl. * iir.

[72] O bilinguismo no Portugal dos séculos XV a XVII é uma questão bastante complexa, cuja génese assenta em factores de ordem muito variada, com particular destaque para os linguísticos, literários e sócio-políticos. Sobre o assunto, cf. Edward GLASER,  «On Portuguese Sprachbetrachtung of the Seventeenth Century»: Studia Philologica. II: Homenaje ofrecido a Dámaso Alonso por sus amigos y discípulos con ocasión de su 60º aniversario. Madrid, Gredos, 1961, pp. 115-126; Pilar VÁZQUEZ CUESTA, «O bilinguismo castelhano-português na época de Camões»: Arquivos do Centro Cultural Português 16 (1981), 807-827; V. TOCCO «Osservazioni sul bilinguismo in Portogallo (sec. XV-XVII)»: Il Confronto Letterario 20 (1983), 319-334. A prestigiada revista Arquivos do Centro Cultural Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, no seu volume 44 (2002), reuniu vários trabalhos subordinados ao tema «La littérature d’auteurs portugais en langue castillane».

[73] A obra mais famosa deste poeta, escrita em castelhano, foi traduzida para a língua italiana precisamente por Alfonso de Ulloa: La Diana de Jorge de Monte Maior, nueuamente corrigida, y reuista por Alonso de Vlloa. Parte primera. [...]. Venecia, por Jo. Comenzini, 1574 (segundo Antonio RUMEU DE ARMAS, Alfonso de Ulloa, introductor de la cultura española en Italia. Madrid, Gredos, 1973, p. 181, há uma primeira edição de 1568).

[74] Sobre as publicações da imprensa de Abraão Usque, em Ferrara, cf. C. ROTH, «The Marrano Press at Ferrara, 1552-1555», op. cit., 307-317; Y. H. Yerushalmi, op. cit., 82-101; A. L. LEONI, «A hitherto unknown edition...», op. cit., 127-136; H. P. SALOMON, «O que tem de judaico...», op. cit., 185-223.

[75] Alfonso de Ulloa traduz do português para o italiano duas obras, uma de João de BARROS, L’Asia del s. Giovanni di Barros, consigliero del christianissimo re di Portogallo, de’ fatti de’ portoghesi nello scoprimento, et conquista de’ mari et terre di Oriente. Venetia, appresso Vincenzo Valgrisio, 1561; a outra de Fernão Lopes de CASTANHEDA, Historia dell’Indie Orientali scoperte, & conquistate da’ Portoghesi di commissione dell’inuittissimo re Don Manuello, di gloriosa memoria. Para uma descrição pormenorizada das traduções de Ulloa, cf. Antonio RUMEU DE ARMAS, op. cit., pp. 162-187. Não parece descabido presumir que tenha sido o próprio Duarte Gomes a sugerir e, até, a auxiliar Ulloa na tradução das duas obras portuguesas acima referidas, dadas as excelentes relações entre ambos e o facto de o autor castelhano, natural de Cáceres, ter também participado na edição da tradução castelhana do Canzoniere de Petrarca.

[76] A edição princeps da Menina e Moça saiu dos prelos de Abraão Usque, em Ferrara, no ano de 1554. Helder MACEDO, Do significado oculto da Menina e Moça. Lisboa, Guimarães Editores, 21999, à luz de uma análise bastante arguta da novela e dos escassos dados biográficos que se conhecem sobre o autor, coloca a hipótese de Bernardim Ribeiro ser um cristão-novo, obrigado como tantos outros a seguir os penosos caminhos do exílio. Esta hipótese interpretativa não obteve o consenso dos investigadores, em particular de E. ASENSIO e de J. V. P. MARTINS, e continua, presentemente, a dividir os estudiosos de Bernardim. J. V. P. MARTINS publicou, aliás, uma reprodução facsimilada da edição de Ferrara, com um extenso estudo introdutório: História de Menina e Moça. Reprodução facsimilada da edição de Ferrara, 1554. Estudo introdutório por José Vitorino de Pina Martins. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. Nessa introdução, faz uma análise crítica e exaustiva dos estudos bernardinianos até à actualidade, apresentando os seus argumentos em detrimento do criptojudaísmo de Bernardim. Mais recentemente, porém, H. P SALOMON, «O que tem de judaico a Menina e Moça?», op. cit., 185-223, rebate, com novíssimos dados, os argumentos esgrimidos por J. V. P. MARTINS. A questão é extremamente complexa e, a nosso ver, continua em aberto. Talvez seja necessário para encontrar Bernardim, como afirmou M. BATAILLON, op. cit., pp. 24-25, «faire table rase de toute sa légende».

[77] Samuel USQUE, Consolação..., op. cit., fl. * vir.

[78] Laura MINERVINI, «Llevaron de acá nuestra lengua. Gli usi linguistici degli ebrei spagnoli in Italia»: Medioevo Romanzo 19 (1994), p. 147.

[79] Cf. C. ROTH, «The role of Spanish in the marrano Diaspora»: F. PIERCE (ed.), Hispanic studies in honour of González Llubera. Oxford, 1959, pp. 299-308; H. P. SALOMON, «Was there a traditional Spanish translation of Sephardi Prayers before 1552?»: The American Sephardi 6 (1973), 79-90; L. MINERVINI, op. cit. 146-148; A. L. LEONI, «La presenza sefardita a Venezia intorno alla metà del Cinquecento. I libri e gli uomini.»: La Rassegna Mensile di Israel 67, n.º 1-2 (2001), pp. 35-110; Idem, «A hitherto unknown edition...», op. cit., pp. 127-136.

[80] Cf. H. P. SALOMON, «The “Last Trial” in Portuguese»: E. TOAFF (a cura di), Studi sull’Ebraismo Italiano in memoria di Cecil Roth. Roma, 1974, pp. 159-185; H. P. SALOMON, «A Shield of Selomo in Portuguese and Spanish»: Philologica Hispaniensa in Honorem Manuel Alvar, vol. 3: Literatura. Madrid, Gredos, 1986, pp. 501-515; A. L. LEONI, «La presenza sefardita a Venezia..., op. cit., p. 60, nota 114.

[81] Veja-se as palavras justificativas com que termina o prólogo, que se seguem às da citação já feita anteriormente: «E dado caso que a volta ouve muitos do desterro de Castela, e os meus passados daly ajam sido, mais razaõ parece que tenha agora conta com o presente e mayor cantidade».

[82] Sobre o bucolismo português, cf. José Cardoso BERNARDES, O bucolismo português. A égloga do Renascimento e do Maneirismo. Coimbra, Almedina, 1988.

[83] Não será este o momento azado para desenvolver o tema, mas parece haver características específicas destes géneros literários que justificam a preferência que lhes foi dada pelos membros da comunidade judaico-portuguesa.

[84] Cf. J. V. P. MARTINS, «Consolação às Tribulações de Israel de Samuel Usque. Alguns dos seus aspectos messiânicos e proféticos – uma obra-prima da língua e da literatura portuguesas»: Samuel USQUE, Consolação às tribulações de Israel. Edição de Ferrara, 1553, com estudos introdutórios por Yosef Hayim Yerushalmi e José V. de Pina Martins. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, vol. I, 125-404.

[85] Acerca da errónea identificação de Jerónimo Vargas com o seu pai, cujo nome hebraico era Yomtob Attias, veja-se A. L. LEONI «New information on Yomtob Attias co-publisher of the Ferrara Bible»: Sefarad 57 (1997) 271-276. É do nosso conhecimento um estudo, ainda inédito, deste investigador, em que são fornecidas novas informações sobre os co-editores da Bíblia de Ferrara.

[86] Sobre o episódio da participação de Diogo Pires e de Jerónimo de Vargas como protagonistas no início do conturbado processo de publicação da Bíblia de Ferrara, cf. R. SEGRE, «Contribución documental...», op cit., 205-226.

[87] Sobre as duas dedicatórias da Bíblia de Ferrara, cf. I. M. HASSÁN, «Dos introducciones de la Biblia de Ferrara»: I. M. HASSÁN (ed.), Introducción a la Biblia de Ferrara. Actas del Simposio Internacional sobre la Biblia de Ferrara (Sevilla, 25-28 de noviembre de 1991). Madrid, 1994, pp. 35-43.

[88] Para uma análise pormenorizada e documentada dos acontecimentos relativos à viagem de Diogo Pires a Inglaterra, cf. A. M. L. ANDRADE, O Cato Minor de Diogo Pires...», op. cit., pp. 103-109; 126-133.

[89] Cf. A. L. LEONI, «A hitherto unknown edition...», op. cit., p. 131.

[90] O compêndio de Duarte Pinel tem gravado no frontispício: Eduardi Pinelli Lusitani Latinae Grãmatices Compendia. Eiusdem tractatus de Calẽdis. Prima editio. Vlissipone, apud Ludouicum Rhotorigium Typographum, 1543. Temos conhecimento de apenas quatro exemplares desta raríssima obra, à guarda das seguintes instituições: British Library, Biblioteca Nacional de Madrid, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Biblioteca da Universidade de Sevilha. Consultámos uma reprodução integral dos exemplares da British Library e da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Este último está incompleto, por falta das páginas iniciais, e ostenta o famoso carimbo da Real Bibliotheca levada por D. João VI para o Brasil, a qual constituiu, como se sabe, a base do riquíssimo acervo daquela que veio a ser a primeira biblioteca brasileira.

[91] Cf. H. P SALOMON, «O que tem de judaico...», op.cit., pp. 193-198; 221-223. Este investigador teve o mérito de apresentar a análise e transcrição parcial deste importante documento, que fornece indicações preciosas sobre as actividades desenvolvidas, ainda em Lisboa, por Duarte Pinel.

[92] Curiosamente, a segunda tradução para castelhano do Canzoniere de Petrarca ficou a dever-se a Henrique Garcês, um outro cristão-novo português, natural do Porto (que também traduziu para a mesma língua Os Lusíadas de Camões): Los Sonetos / y Canciones del poeta / Francisco Petrarcha, que traduzia Henrique/ Garcés de lengua thoscana / en castellana. En Madrid / impreso en casa de Drouy / impresor de / libros. Año de 1591.

[93] G. ZAVAN, op. cit., p. 87, nota 38, não deixa de colocar a hipótese muito provável de que «queste testemonianze siano state prodotte nel tentativo di accreditare ulteriormente la difesa di Gomez».

[94] Archivo di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fls. 140r-141r [8 de Abril, 1555]. Cf. P. C. IOLY ZORATTINI, Processi...1548-1560, pp. 226-227.

[95] Cf. G. ZAVAN, op. cit., p. 92. Alfonso de Ulloa, na dedicatória à sua tradução para italiano da Institutione d’un Re Cristiano de Felipe de la Torre, confessa ter sido o próprio Duarte Gomes que lhe ofereceu o livro original, em castelhano, e o persuadiu a traduzi-lo.

[96] Para uma análise pormenorizada da relação das obras apreendidas, cf. P. C. IOLY ZORATTINI, Processi...1548-1560, pp. 233-234.

[97] Cf. Archivo di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fl. 245v [declarações de 1 de Agosto de 1555]; P. C. IOLY ZORATTINI, Processi 1548-1560, p. 230.

 

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PUBLICACIÓN ORIGINAL:

ANDRADE, António Manuel Lopes — «Os Senhores do Desterro de Portugal: Judeus Portugueses entre Veneza e Ferrara em meados do século XVI»: Veredas – Revista da Associação Internacional de Lusitanistas 6 (2006), pp. 65-108.


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EL AUTOR
António Manuel Lopes Andrade. Curriculum y otros artículos del autor en este blog:

A FIGURA DE SALOMÃO USQUE: A FACE OCULTA DO HUMANISMO JUDAICO-PORTUGUÊS

A FÁBULA NA OBRA POÉTICA DE DIOGO PIRES

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Fotografía de portada: Marca do impressor Duarte Pinel, alias Abraão Usque

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ARLINDO N.M. CORREIA. Abraao Usque, Samuel Usque,Salomon Usque

A FIGURA DE SALOMÃO USQUE: A FACE OCULTA DO HUMANISMO JUDAICO-PORTUGUÊS

A FIGURA DE SALOMÃO USQUE: A FACE OCULTA DO HUMANISMO JUDAICO-PORTUGUÊS

António Andrade

Universidade de Aveiro/ Portugal

 

Palavras-chave:

Salomão Usque, Duarte Gomes, Petrarca, Humanismo judaico-português, Estudos sefarditas

Resumo:

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante enigmática e controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas e poucas certezas. Por detrás deste homem invulgar, cujo percurso foi semelhante ao de tantos outros judeus portugueses, esconde-se uma das figuras mais destacadas do Humanismo português de Quinhentos, conhecida sob o nome de Duarte Gomes: poeta e mercador, médico e financeiro, professor e diplomata foram algumas das principais actividades que exerceu com igual distinção tanto na terra que o viu nascer como naquelas para onde se viu obrigado a partir.

Ficou a dever-se a Vasco Graça Moura a recente publicação de uma primorosa tradução em verso – a primeira integralmente plasmada na língua de Camões – das Rimas de Petrarca. No entanto, o reputado poeta e crítico literário nosso contemporâneo não foi o primeiro português a cometer o feito de apresentar uma tradução em verso da referida obra de Petrarca.

 

 

Salomão Usque publicou, em 1567, nos prelos venezianos de Niccolò Bevilacqua, a primeira tradução para língua castelhana de parte do Canzoniere de Petrarca. A obra em causa tem gravado o seguinte título:

«De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas del gran Poeta y Orador Francisco Petrarca, traduzidos de Toscano por Salusque Lusitano [Salomon Usque Hebreo]. Parte primera. Con breves Sumarios, ò Argumentos en todos los Sonetos y Canciones que declaran la intencion del autor. Compuestos por el mismo. Con dos Tablas, una Castellana y la otra Toscana y Castellana. Con privilegios. En Venecia. En casa de Nicolao Beuilaqua, MDLXVII».

 

 

Reprodução parcial da página de abertura da tradução castelhana do Canzoniere de Petrarca, dada à estampa em Veneza, em 1567

 

Os exemplares existentes deste livro denotam uma única mas significativa diferença entre si: uns apresentam no frontispício o nome do tradutor como «Salusque Lusitano», enquanto outros indicam «Salomon Usque Hebreo»[1]. Tem sido, por isso, relativamente consensual atribuir a esta misteriosa figura a condição de cristão-novo português.

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante enigmática e controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas e poucas certezas. Os problemas agudizam-se, quando se procura identificar com precisão o autor da tradução castelhana da primeira parte do Canzoniere de Petrarca ou equacionar as eventuais relações entre os três célebres cristãos-novos portugueses que ostentam o mesmo apelido: Abraão, Samuel e Salomão Usque.

Alguns estudiosos tendem a identificar Salomão Usque com o mercador Duarte Gomes, agente comercial da inteira confiança da famosa D. Grácia Nasci, que ficou conhecida entre os cristãos-novos como ‘A Senhora’[2]. Outros, pelo contrário, entendem que Salomão Usque corresponde ao nome verdadeiro de um indivíduo, não se tratando apenas de um simples pseudónimo literário[3].

A este respeito, impõe-se assinalar neste momento a publicação no ano transacto de um importante trabalho intitulado Gli ebrei, i marrani e la figura di Salamon Usque, da autoria de Gabriella Zavan, que tem o mérito de tratar, com inegável clareza e profundidade, as várias questões que envolvem a figura de Salomão Usque e que têm atraído o interesse de cada vez mais estudiosos.

Esta autora procura traçar a biografia possível do enigmático tradutor de Petrarca, embora constate não ter sido encontrado, até ao momento, qualquer vestígio da existência de Salomão Usque nos locais onde ele supostamente terá vivido. Na verdade, Zavan põe em evidência a situação distinta em que se encontra cada uma das figuras: enquanto as únicas referências disponíveis sobre a vida de Salomão Usque se depreendem apenas da sua obra literária, ao invés, sobre Duarte Gomes «annovera un gran numero di episodi e di particolari che ci permettono di seguire, almeno fino a un certo punto, le varie tappe della sua esistenza e di ricostruirne la personalità.» (Zavan 2004: 79).

No entanto, embora tenha efectuado a mais completa análise alguma vez feita sobre estas duas supostas figuras, a investigadora italiana opta, de forma assumida, por não tomar uma posição definida sobre a polémica questão central da identificação entre Salomão Usque-Duarte Gomes, que continua a ser, nas suas palavras, «un enigma tuttora aperto».

Não obstante os notáveis avanços na investigação, as sombras teimam em continuar a ocultar a verdadeira face do judeu português que se esconde por detrás dos pseudónimos «Salomon Usque Hebreo» e «Salusque Lusitano».

Assumimos, desde já, a nossa firme convicção de que Salomão Usque e Duarte Gomes são a mesma pessoa, sendo nosso objectivo declarado neste trabalho demonstrá-lo à luz, quer de elementos já conhecidos, quer de outros que traremos de novo à colação.

A tese da identificação entre Salomão Usque e Duarte Gomes assentou, desde sempre, numa prova de indesmentível importância. Referimo-nos, em concreto, ao testemunho directo de Amato Lusitano, o ilustre médico natural de Castelo Branco, que numa das suas famosas Curationes traça um retrato minucioso do seu compatriota Duarte Gomes, a quem assistiu de uma febre terçã na cidade de Ancona:

Duarte Gomes Lusitano, um varão de respeito, douto e poeta não vulgar, o qual, para traduzir com sucesso para a língua castelhana os versos hendecassílabos e as canções de Petrarca escritos em língua italiana, [usa de] de um modo tão adequado, conveniente e ajustado aos seus próprios ritmos que suscita a admiração de todos; aos 45 anos, chega ele de Veneza, onde se dedica a variados e importantes negócios comerciais, a Ancona onde, tendo sido convidado por amigos, como é hábito, para opíparos e lautos banquetes, caiu doente com uma dupla terçã.[4]

Não se pode ficar indiferente perante as palavras claras de Amato, que é bastante explícito na descrição das múltiplas aptidões de Duarte Gomes, sobretudo enquanto exímio tradutor da poesia de Petrarca. No dizer do célebre médico, o mercador português, além de ser um homem respeitável e douto, suscitava a admiração de todos com as suas traduções perfeitas da poesia do vate de Arezzo, que denotavam ser possuidor de uma apurada sensibilidade poética. Não se pode também deixar de notar que Duarte Gomes traduz da língua italiana para a castelhana à semelhança do seu suposto conterrâneo Salomão Usque.

As palavras de Amato adquirem ainda mais importância pelo facto de ele partilhar, quer com Duarte Gomes, quer com Salomão Usque, a dupla condição de hebreus e lusitanus. Além disso, como se verá, o médico albicastrense há muito que conhecia Duarte Gomes, já que ambos tinham sido colegas no Estudo de Salamanca.

No entanto, Amato Lusitano não é a única testemunha contemporânea das qualidades excepcionais de Duarte Gomes como tradutor de Petrarca. De facto, o humanista italiano Girolamo Ruscelli, no longo texto introdutório com que dedica ao mercador português o seu tratado Del modo de comporre in versi nella lingua italiana, tece rasgados elogios às suas qualidades excepcionais como poeta e, em particular, como exímio tradutor de Petrarca para a língua castelhana, afirmando que «fra molti dotti e rarissimi componimenti suoi, ella habbia fatto il Petrarca nostro in lingua Castigliana, che à qui non sapesse la verità dell’istoria si farebbe dubbioso in quale di queste due nobilissime lingue Italiana, ò Spagnola il Petrarca l’avesse scritto»[5].

Amato e Ruscelli, duas figuras das relações próximas de Duarte Gomes, apresentam-nos assim dois depoimentos coincidentes, irrefutáveis e inequívocos de que este era um exímio tradutor de Petrarca para a língua castelhana.

(Temporalmente falta una imagen. Se solucionará lo más rápido posible.)

Não se estranha, por isso, que tenha havido desde tempos recuados uma tendência notória, por parte dos investigadores, para presumir que Salomon Usque Hebreo ou Salusque Lusitano era um pseudónimo literário atrás do qual se escondia o rosto de Duarte Gomes[6]. Ambos eram judeus, eram portugueses, tinham amigos comuns, estavam estabelecidos em Veneza e, como se não bastasse, ambos traduziam Petrarca para a língua castelhana de forma igualmente brilhante e talentosa.

Entre os membros da Nação Portuguesa, estabelecidos por esta época em Veneza, Ferrara ou Ancona, haveria, por certo, alguns indivíduos com uma formação humanística do mais alto nível, capazes de empreender a difícil e exigente tradução da obra de Petrarca, tarefa que o próprio Salomão Usque, na sua dedicatória da tradução ao príncipe Alessandre Farnese, considera ser «Opera in verità da molti ricercata, da pochi intrapresa, e da nessuno finora portata a termine.» (fl. a2r).

Mas será que de entre o grupo de judeus portugueses que poderiam reunir as condições necessárias para o fazer, um grupo já por si bastante restrito, será provável, perguntamos nós, que existam dois indivíduos capazes não só de traduzir um texto poético difícil, nunca até então traduzido para castelhano, mas também de o fazer com a arte e o engenho que os testemunhos reconhecem a Duarte Gomes e que a tradução impressa de Salomão Usque evidencia? Forçoso se torna admitir, em nossa opinião, que as probabilidades da ocorrência de uma conjugação tão favorável não podem ser muito elevadas.

Acresce também que nunca se encontrou até à presente data, nem em versão impressa nem manuscrita, tradução alguma de Petrarca para língua castelhana, atribuída ou de alguma forma atribuível a Duarte Gomes. Tudo leva a crer, portanto, que os dois nomes, Duarte Gomes e Salomão Usque, correspondem, afinal, a uma única pessoa.

Assumida que está a identificação das duas figuras, convém agora procurar compreender como foi possível ao mercador lusitano traduzir, da forma como o fez, o Canzoniere de Petrarca para a língua castelhana.

Duarte Gomes não era apenas um simples agente comercial da inteira confiança de D. Grácia Nasci, de quem era também médico particular. Não restam dúvidas de que este cristão-novo português, ao serviço dos Mendes-Benveniste, era um indivíduo excepcional com uma cultura e uma formação humanísticas do mais alto nível. Trata-se de alguém, como se verá, que ergueu bem alto o seu nome junto dos círculos mais restritos do poder e da cultura, durante os anos da década de trinta em que viveu em Lisboa.

Duarte Gomes nasce precisamente na cosmopolita e populosa capital do reino, no ano de 1510, no seio de uma família de cristãos-novos de alta categoria social[7]. Nos verdes anos da sua juventude, tal como era hábito entre os descendentes das famílias socialmente mais elevadas, assistiu, muito provavelmente, às lições de algum mestre conceituado de latinidades, que lhe terá ministrado os rudimentos necessários no domínio das línguas e literaturas clássicas e da gramática, para mais tarde prosseguir, sem dificuldade, os estudos universitários.

Nas primeiras décadas de Quinhentos, os jovens portugueses que continuavam os seus estudos, faziam-no, em geral, na Universidade então estabelecida em Lisboa, ainda que muitos partissem para frequentar universidades estrangeiras, por vezes com o alto patrocínio do próprio monarca português. Entre as instituições estrangeiras, a consagrada Universidade de Salamanca era aquela que colhia a preferência de um maior número de alunos oriundo de terras lusitanas (Serrão 1962).

Entre os escolares portugueses contavam-se inúmeros cristãos-novos que prosseguiam os seus estudos, ainda muito jovens, na cidade do Tormes. Para muitos deles, cursar medicina constituía um dos objectivos prioritários e dava, no fundo, continuidade à já antiga e reconhecida tradição judaica no estudo e no exercício da arte de Galeno. Foi precisamente este o percurso que Duarte Gomes trilhou nos vários anos em que frequentou o Estudo de Salamanca. Disso não subsistem dúvidas, já que é possível documentar todo o percurso deste jovem promissor. Dá-se a coincidência extraordinária de termos à nossa disposição, por um lado, os registos existentes no Arquivo da Universidade de Salamanca e, por outro, uma transcrição integral dos próprios diplomas académicos que foram passados a Duarte Gomes como prova dos seus bacharelatos em Artes e em Medicina. Esta situação verdadeiramente excepcional fica a dever-se ao facto de Duarte Gomes ter apresentado os seus diplomas ao Tribunal do S. Uffizio di Venezia no decorrer do processo de que foi alvo em 1568, o qual contém uma transcrição fiel e certificada dos mesmos, realizada a partir dos documentos originais (Ioly Zorattini 1982: 74-76).

É assim possível saber que Duarte Gomes obteve o grau de bacharel em Artes e Filosofia, no dia 10 de Março de 1529, «sub disciplina reverendi Pedri Margallio». Pedro Margalho, célebre teólogo lusitano, leccionou durante vários anos na Universidade de Salamanca e coube-lhe a ele avaliar o mérito do jovem candidato a bacharel, que à data contava apenas dezoito anos (Serrão 1962: 170-177). Uma vez que eram necessários três anos de estudos para alcançar o grau de bacharel em Artes, é lícito supor que este terá principiado os seus estudos em Salamanca, com apenas quinze anos de idade, no início de 1526.

O jovem aluno reunia então os requisitos necessários para prosseguir os seus estudos em Medicina, que iniciou logo de seguida. Cerca de quatro anos volvidos, no preciso dia 24 de Abril de 1532, prestava as provas conducentes ao bacharelato em medicina perante o também português Doutor Agostinho Lopes, uma das figuras marcantes da Universidade de Salamanca (Serrão 1962: 223-225).

Duarte Gomes faz um percurso exemplar na Universidade de Salamanca ao longo dos cerca de sete anos de formação em que se bacharelou sucessivamente em Artes e em Medicina. Na verdade, os estudos do poeta-mercador em Salamanca não constituem novidade desde que Ioly Zorattini transcreveu e publicou o processo inquisitorial movido ao mercador português, o qual inclui a cópia certificada dos documentos comprovativos dos graus obtidos.

 

Laura e Petrarca, miniatura dal Canzoniere
Fuente: www2.polito.it/.../Petrarca/Petrarca.html

 

No entanto, a importância dos estudos do tradutor de Petrarca só é verdadeiramente perceptível se tivermos em conta o papel crucial que o Estudo de Salamanca desempenhou na formação da fina-flor do Humanismo português. À cidade do Tormes acorreram cerca de oitocentos estudantes portugueses apenas durante a primeira metade de Quinhentos num movimento que se acentuou bastante a partir de meados da década de vinte. Os cristãos-novos constituíram sempre um grupo relativamente numeroso entre estes escolares salmantinos, e não restam dúvidas de que a geração onde se inclui Duarte Gomes veio a contribuir de modo decisivo para a consolidação e renovação do movimento humanista português.

De facto, Duarte Gomes integra um grupo excepcional de escolares portugueses de ascendência hebraica, cujo percurso académico é, em grande medida, comum tanto nas matérias cursadas, como no período em que decorreram os estudos. Falamos de alguns dos nomes mais reputados do Humanismo português em várias áreas do saber, que constituíam, no fundo, os descendentes directos de destacadas famílias judaico-portuguesas ainda a viver em Portugal.

Como já referimos, os estudos de Duarte Gomes em Salamanca decorreram entre os anos de 1526 e 1532. Durante os primeiros anos da sua permanência no Estudo, cruzou-se com os seus ilustres compatriotas cristãos-novos Pedro Nunes e Jerónimo Cardoso, que se encontravam a terminar os seus cursos. Não muito antes, também Garcia de Orta tinha sido aluno em Salamanca.

Mais importante, porém, se torna assinalar a existência de um grupo de notáveis escolares portugueses, todos eles de origem hebraica, a cursar medicina juntamente com Duarte Gomes. Trata-se, de facto, de uma geração de ouro com um percurso quase coincidente na cidade do Tormes. Neste grupo se inscrevem vários humanistas notáveis como Amato Lusitano, António Luís, Diogo Pires, Luís Nunes de Santarém ou Tomás Rodrigues da Veiga, que adquirem em conjunto uma formação a todos os títulos excepcional, como os seus percursos individuais quer em Portugal quer na diáspora o podem, sem dúvida, comprovar.

Antes do regresso à sua cidade natal, Duarte Gomes encaminhou-se para Medina del Campo, onde afirma ter estudado também. Não se demorou, porém, muito tempo na famosa praça comercial castelhana, já que em Dezembro de 1533, ou seja, no ano seguinte àquele em que obtivera o bacharelato em Medicina em Salamanca, o vamos encontrar de novo em Lisboa.

No decurso do processo que lhe foi instaurado em 1555 pelo S. Uffizio di Venezia, ao ser interrogado sobre a sua profissão, ele respondeu: «Adesso esercito la mercantia, ma non l’ho esercitata sempre perchè per avanti ho studiato in lettere humanis et artibus et philosophia et medicina et etiam aliquid in sacra theologia et studiai a Medina, doppo ho letto publicamente in Ulisbona con salario regio»[8]. Esta declaração constitui uma síntese esclarecedora dos estudos efectuados por Duarte Gomes ao longo da sua existência. Ficamos assim a saber que também se dedicou ao estudo da teologia em Salamanca e que, após a sua breve passagem por Medina del Campo, foi professor em Lisboa «con salario regio».

Curiosamente, os investigadores não têm conseguido comprovar de forma documental a actividade docente que Duarte Gomes diz ter exercido na cidade de Lisboa[9]. Ioly Zorattini, a quem devemos a publicação integral dos dois processos inquisitoriais venezianos instaurados ao cristão-novo português, afirma ter efectuado, sem qualquer sucesso, pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no sentido de documentar esta prática docente (Ioly Zorattini 1980: 230, nota 15).

Na verdade, a documentação comprovativa do percurso académico lisboeta, não só de Duarte Gomes como de vários dos seus antigos colegas de Salamanca, existe de facto, mas encontra-se à guarda do Arquivo da Universidade de Coimbra. Referimo-nos em concreto aos dois códices originais conhecidos pelo nome de Livros da Universidade de Lisboa[10], que contêm o registo manuscrito de variados actos académicos, cuja leitura permite traçar um retrato fidedigno da vida da Universidade de Lisboa desde 1506 até 1537, data em que foi transferida em definitivo para Coimbra, por ordem de D. João III.

Ora, tanto Duarte Gomes como os seus colegas salmantinos, a que já nos referimos, regressaram ao seu país, após a conclusão dos estudos. Uma parte significativa destes jovens vai envidar todos os esforços no sentido de ingressar no corpo docente da Universidade de Lisboa. Esse era, sem dúvida, o objectivo central de muitos dos recém-chegados e vários foram os que viram os seus intentos coroados de sucesso. Os antigos colegas reencontram-se assim na capital do reino, onde travam uma dura competição por um lugar efectivo no Estudo Geral de Lisboa: Duarte Gomes, António Luís, Luís Nunes de Santarém, Manuel Reinel e Manuel Lindo são intervenientes directos nesta disputada corrida ao ingresso na carreira docente.

Formados em Salamanca, estes jovens trouxeram consigo as tendências humanistas de que estavam imbuídos e contribuíram decisivamente para a renovação e qualificação do ensino praticado na Universidade de Lisboa.

António Luís, Duarte Gomes e Manuel Reinel iniciam sem demora o processo de obtenção da licenciatura em medicina que era a etapa seguinte na sua carreira académica, após o bacharelato de Salamanca. Num curto espaço de tempo, cumpridas as necessárias formalidades, os três obtêm a licenciatura em Medicina pela Universidade de Lisboa.

No dia 31 de Janeiro de 1534, celebra-se o termo do marcar dos pontos e auto do exame privado em Medicina efectuado pelo bacharel Duarte Gomes, que lhe havia de valer o grau de licenciado[11]. Entre as várias testemunhas do acto conta-se o ainda bacharel Luís Nunes.

Anunciava-se então para breve um disputadíssimo concurso, cuja abertura estava prevista para as férias de Verão. Em cumprimento da vontade de D. João III, o Conselho da Universidade, reunido no dia 12 de Agosto de 1534, resolve pôr a concurso a cadeira de Artes, que havia pertencido ao famoso médico e botânico Garcia de Orta. Pela respectiva ordem de inscrição, encontramos entre os oponentes a este concurso o bacharel Manuel Dias, o licenciado António Luís, o licenciado Manuel Reinel, o licenciado Manuel Lindo, o licenciado Duarte Gomes e, por último, o licenciado Jerónimo Fernandes[12].

No dia 9 de Novembro de 1534, realiza-se finalmente a eleição do vencedor «da cadeyra dartes que vagou pella ausentia do Licenciado orta»[13]. Dos dezoito votos contados, Duarte Gomes recolheu nove, Manuel Lindo seis, Manuel Reinel dois e Manuel Dias apenas um. António Luís, por seu turno, não teve nenhum voto. Termina desta forma o renhido concurso com a eleição e tomada de posse do vitorioso Duarte Gomes por um período de três anos, a contar desde a data da abertura da vaga.

Algum tempo antes da eleição de Duarte Gomes, no dia 1 de Outubro de 1534, tivera lugar a abertura oficial do ano lectivo, com a habitual e solene oração de sapiência proferida em língua latina pelo humanista André de Resende (1956).

Ora, um dos momentos mais altos da carreira académica de Duarte Gomes ocorreu um ano depois, no dia 1 de Outubro de 1535, quando foi convidado para proferir publicamente a oração de sapiência na abertura desse ano lectivo (Ferreira 1937: 815, 858 e 879). Tratava-se dum acto da maior solenidade que decorria na presença das mais importantes autoridades, no qual era costume o orador fazer o elogio das disciplinas ministradas no Estudo Geral. Não era forçoso que a figura designada para apresentar a oração latina fosse um docente universitário. Para o efeito, eram convidadas, por vezes, individualidades de grande talento, mesmo que não possuíssem qualquer vínculo à instituição.

Assim aconteceu em 1534 com a oração proferida por André de Resende, e de novo, em 1536, quando coube a Jerónimo Cardoso, que também foi estudante em Salamanca, a apresentação da mesma oração (Cardoso 1965). Nem um nem outro foram alguma vez docentes do Estudo Geral de Lisboa: ambos foram convidados pelo seu reconhecido mérito. A escolha de Duarte Gomes para apresentar a oração de sapiência, numa altura em que contava apenas vinte e cinco anos, constitui, pois, uma das consagrações máximas a que alguém podia aspirar tanto na carreira académica como fora dela e apenas estava ao alcance de um grupo bastante restrito[14]. As orações de sapiência de André de Resende (1534), Duarte Gomes (1535) e Jerónimo Cardoso (1536) são, aliás, as últimas a serem proferidas no Estudo Geral de Lisboa, já que o ano lectivo de 1536-1537 ficaria marcado pela transferência definitiva da Universidade para Coimbra.

Duarte Gomes também foi obrigado a mudar não apenas de cidade mas de país. Para trás deixou, em viagem sem regresso, as margens do Tejo rumo a Antuérpia. Não é hora, porém, de lhe seguir o rasto, pelo que nos resta concluir em breves palavras este trabalho[15].

Por detrás deste homem invulgar, cujo percurso foi semelhante ao de tantos outros judeus portugueses, esconde-se uma das figuras mais destacadas do humanismo português de Quinhentos: poeta e mercador, médico e financeiro, professor e diplomata foram algumas das principais actividades que exerceu com igual distinção quer na terra que o viu nascer quer naquelas para onde se viu obrigado a partir.

Curiosamente, os pseudónimos que durante tanto tempo ocultaram a sua verdadeira identidade, «Salomon Usque Hebreo» e «Salusque Lusitano», são os mesmos que revelam esta dupla condição de judeu e português, uma relação difícil mas profunda e dolorosamente sentida tanto por ele como pelos milhares de homens e mulheres que se viram obrigados a abandonar uma terra que também era a sua.

Apesar de tudo, Duarte Gomes, à semelhança dos seus conterrâneos da Nação Portuguesa de Ancona, Ferrara ou Veneza, nunca deixou de assumir, onde quer que fosse, a sua condição de português com dignidade e orgulho.

De Lisboa a Veneza, foi longo e penoso o caminho percorrido por esta personalidade excepcional, que merece, sem sombra de dúvida, um lugar de destaque na história do humanismo judaico-português.

Referências

Brooks, Andrée Aelion

2003 The woman who defied Kings. The life and times of Doña Gracia Nasi - Jewish leader during the Renaissance. St. Paul: Paragon House.

Cardoso, Jerónimo

1965 Oração de sapiência proferida em louvor de todas as disciplinas. Reprodução fac-similada da edição de 1550. Tradução de Miguel Pinto de Meneses. Introdução de Justino Mendes de Almeida. Lisboa: Instituto de Alta Cultura.

Dias, José Sebastião da Silva

A política cultural da época de D. João III. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2 vols.

Ferreira, Francisco Leitão

Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra [...]. Primeira parte [...]. Segunda edição, organizada por Joaquim de Carvalho. Coimbra: Por ordem da Universidade de Coimbra.

Ioly Zorattini, Pier C. (a cura di)

1980 Processi del S. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1548-1560). Firenze: Leo S. Olschki.

Ioly Zorattini, Pier C. (a cura di)

1982 Processi del S. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1561-1570). Firenze: Leo S. Olschki.

Leoni, Aron di Leone

2005 The Hebrew Portuguese Nations in Antwerp and London at the time of Charles V and Henry VIII. New documents and interpretations. New Jersey: Ktav.

Petrarca, Francesco

As Rimas [org. e trad. de] Vasco Graça Moura. Lisboa: Bertrand.

Resende, André de

Oração de sapiência (Oratio pro rostris). Tradução de Miguel Pinto de Meneses; introdução e notas de A. Moreira de Sá. Lisboa: Instituto de Alta Cultura.

Roth, Cecil

1943-1944 ‘Salusque Lusitano’, an essay in disentanglement. The Jewish Quarterly Review, n.s., 34: 65-85.

Salomon, Herman Prins

Deux études portugaises * Two portuguese studies. Braga: Barbosa & Xavier.

Salomon, Herman Prins – Leoni, Aron di Leone

1998 Mendes, Benveniste, De Luna, Nasci: the state of the art. The Jewish Quarterly Review 88, n.os 3-4: 135-211.

Serrão, Joaquim Veríssimo

Portugueses no Estudo de Salamanca (1200-1550). Lisboa: Imprensa de Coimbra.

Zavan, Gabriella

2004 Gli ebrei, i marrani e la figura di Salomon Usque [prefazione di Aron di Leone Leoni]. Treviso: Santi Quaranta.

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NOTAS


[1] A Biblioteca Nacional de Lisboa guarda um exemplar da variante «Salomon Usque Hebreo» (Res. 2444 V).

[2] Entre a vastíssima bibliografia existente sobre a família dos Mendes-Benveniste, referem-se apenas dois importantes trabalhos publicados recentemente por H. P. SALOMON – A. di Leone LEONI (1998) e A. A. BROOKS (2003).

[3] Aproveitamos a oportunidade para fazer referência à nossa recensão crítica ao estudo de G. Zavan, acabada de publicar em Zakhor – Rivista di Storia degli Ebrei d’Italia 8 (2005), 228-232.

[4] AMATO LUSITANO, Amati Lusitani medici praestantissimi curationum medicinalium, centuriae duae, quinta et sexta. Lugduni, apud Gulielmum Rouillium, 1580, p. 85 [centuria V, curatio XIX]:

Eduardus Gomez Lusitanus, uir grauis, doctus et poeta non uulgaris, ut qui Petrarchae numeros hendecasyllabos et cantiunculas Hetrusca lingua scriptas feliciter in linguam Hispanicam uertat, ita cordate, apposite et suis numeris consone, ut omnibus admirationi sit. Hic anno aetatis suae 45 ex Venetiis ubi uaria et ingentia mercium negocia exercet, Anconam uenit, ubi ab amicis (ut fieri solet) ad opipara et lauta conuiuia inuitatus, in duplicem tertianam lapsus est.

[5] Girolamo RUSCELLI, Del modo di comporre in versi nella lingua italiana, trattato di Girolamo Ruscelli, Nel quale va compreso vn pieno & ordinatissimo Rimario. Nuouamente mandato in luce. Venetia, appresso Gio. Battista Sessa et Melchior Sessa fratelli, [1558], fl. a5v. Para uma análise minuciosa da longa dedicatória de Ruscelli a Gomes, cf. G. ZAVAN (2004: 88-91).

[6] Antes da publicação do artigo de C. ROTH (1944), a generalidade dos investigadores, quase sempre com base no testemunho de Amato, deu mais ou menos por adquirida a identificação entre Salomão Usque e Duarte Gomes, sem contudo ter aprofundado muito a questão. Para uma análise pormenorizada do avanço da investigação com as contribuições de N. Antonio, H. Graetz e M. Kaiserling, cf. G. ZAVAN (2004: 67-71). H. P. SALOMON (1991: 63-66) foi o primeiro investigador, de que temos conhecimento, a vir a público refutar a tese de Roth de que Salomão Usque e Duarte Gomes eram pessoas distintas, apesar de não ter apresentado argumentos decisivos no sentido de justificar a sua posição.

[7] Aproveitamos o ensejo para dar conta da publicação recente de um importante estudo intitulado The Hebrew Portuguese Nations in Antwerp and London at the time of Charles V and Henry VIII. New documents and interpretations, da autoria do consagrado investigador A. di Leone Leoni, a quem muito agradecemos a preciosa ajuda e incentivo na realização deste trabalho. O livro traz a público, como pudemos verificar de antemão, graças à gentileza do autor, novíssimos elementos, alicerçados num vasto corpus documental, não só sobre a família e as actividades de Duarte Gomes, como de muitos outros membros destacados da Nação Portuguesa.

[8] Cf. Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fl. 245v [declarações de 1 de Agosto de 1555]; cf. P. C. IOLY ZORATTINI (1980: 230).

[9] Em geral, os investigadores limitam-se a fazer uma simples referência ao excerto do processo acima transcrito para darem conta da prática lectiva de Duarte Gomes na cidade de Lisboa. Cf. A. A. BROOKS (2003: 381); G. ZAVAN (2004: 80).

[10] Devemos ao investigador A. Moreira de Sá a publicação monumental da documentação de difícil leitura constante dos Livros da Universidade de Lisboa: A. de Moreira de SÁ (ed.), Auctarium Chartularii Universitatis Portugalensis. Documentos coligidos e publicados por A. Moreira de Sá. Volume I (1506-1516) [Volume II (1516-1529); Volume III (1530-1537)]. Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1973-1979. Para uma descrição pormenorizada dos Livros da Universidade de Lisboa, cf. Auctarium, vol. I, pp. VIII-IX.

[11] Cf. Auctarium, vol. III, p. 204. No processo inquisitorial de Veneza, de 1568, encontra-se uma cópia do diploma de licenciatura passado a Duarte Gomes. Cf. Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fl. 12r-v; P. C. IOLY ZORATTINI (1982: 76-78).

[12] Cf. Auctarium, vol. III, pp. 227-228, «Conselho onde foi resolvido pôr por vaga a cadeira de Artes e lista de opoentes».

[13] Cf. Auctarium, vol. III, pp. 239-240, «Eleição do licenciado Duarte Gomes para a cadeira de Artes».

[14] Não tinha razão J. S. da Silva DIAS (1969: 572), quando esgrimia o suposto abatimento do Estudo como causa da transferência da Universidade para Coimbra: «A corporação preteriu, aliás, [Garcia de] Orta e [António] Luís em mais de um concurso, dando o seu voto a candidatos – um Duarte Gomes, um Luís Nunes – cuja fama só chegou até nós na vasa dos atropelos académicos.». De facto, as palavras de Silva Dias deixam de ter sentido à luz do que se conhece actualmente sobre a figura de Duarte Gomes, cuja vitória no concurso de 1534 não nos parece ter deslustrado, de forma alguma, a imagem do seu colega e amigo António Luís.

[15] Esta comunicação apresenta os primeiros frutos de uma investigação ainda em curso sobre a figura de Salomão Usque-Duarte Gomes, cujo resultado final tencionamos publicar em breve sob a forma de uma monografia.

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EL AUTOR

António Manuel Lopes Andrade, docente da Universidade de Aveiro, onde se doutorou em Literatura Latina, tem vindo a desenvolver a sua investigação nas áreas do Humanismo Renascentista Português, da Literatura Novilatina e da História dos Judeus Portugueses. Entre os seus trabalhos mais recentes, destacam-se a dissertação de doutoramento, intitulada O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do século XVI, e o presente artigo, A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português


Antonio Manuel Lopes Andrade, profesor de la Universidad de Aveiro, donde se doctoró en Literatura Latina, ha desarrollado su investigación en las áreas del Humanismo Renacentista Portugués, de la Literatura Neolatina y de la Historia de los Judíos Portugueses. Entre sus trabajos más recientes cabe destacar su tesis doctoral, bajo el título de O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do século XVI, y el presente artículo, A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português.


Curriculum, Página pessoal: http://www.dlc.ua.pt/classicos/Andrade.htm

e-mail: aandrade@dlc.ua.pt

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IMAGEN de portada:

Gravura que ilustra a última página da primeira tradução castelhana do Canzoniere de Petrarca, dada à estampa em Veneza, em 1567

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