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A FIGURA DE SALOMÃO USQUE: A FACE OCULTA DO HUMANISMO JUDAICO-PORTUGUÊS

A FIGURA DE SALOMÃO USQUE: A FACE OCULTA DO HUMANISMO JUDAICO-PORTUGUÊS

António Andrade

Universidade de Aveiro/ Portugal

 

Palavras-chave:

Salomão Usque, Duarte Gomes, Petrarca, Humanismo judaico-português, Estudos sefarditas

Resumo:

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante enigmática e controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas e poucas certezas. Por detrás deste homem invulgar, cujo percurso foi semelhante ao de tantos outros judeus portugueses, esconde-se uma das figuras mais destacadas do Humanismo português de Quinhentos, conhecida sob o nome de Duarte Gomes: poeta e mercador, médico e financeiro, professor e diplomata foram algumas das principais actividades que exerceu com igual distinção tanto na terra que o viu nascer como naquelas para onde se viu obrigado a partir.

Ficou a dever-se a Vasco Graça Moura a recente publicação de uma primorosa tradução em verso – a primeira integralmente plasmada na língua de Camões – das Rimas de Petrarca. No entanto, o reputado poeta e crítico literário nosso contemporâneo não foi o primeiro português a cometer o feito de apresentar uma tradução em verso da referida obra de Petrarca.

 

 

Salomão Usque publicou, em 1567, nos prelos venezianos de Niccolò Bevilacqua, a primeira tradução para língua castelhana de parte do Canzoniere de Petrarca. A obra em causa tem gravado o seguinte título:

«De los Sonetos, Canciones, Mandriales y Sextinas del gran Poeta y Orador Francisco Petrarca, traduzidos de Toscano por Salusque Lusitano [Salomon Usque Hebreo]. Parte primera. Con breves Sumarios, ò Argumentos en todos los Sonetos y Canciones que declaran la intencion del autor. Compuestos por el mismo. Con dos Tablas, una Castellana y la otra Toscana y Castellana. Con privilegios. En Venecia. En casa de Nicolao Beuilaqua, MDLXVII».

 

 

Reprodução parcial da página de abertura da tradução castelhana do Canzoniere de Petrarca, dada à estampa em Veneza, em 1567

 

Os exemplares existentes deste livro denotam uma única mas significativa diferença entre si: uns apresentam no frontispício o nome do tradutor como «Salusque Lusitano», enquanto outros indicam «Salomon Usque Hebreo»[1]. Tem sido, por isso, relativamente consensual atribuir a esta misteriosa figura a condição de cristão-novo português.

Salomão Usque foi, desde sempre, uma figura bastante enigmática e controversa, cuja análise tem suscitado aos investigadores muitas dúvidas e poucas certezas. Os problemas agudizam-se, quando se procura identificar com precisão o autor da tradução castelhana da primeira parte do Canzoniere de Petrarca ou equacionar as eventuais relações entre os três célebres cristãos-novos portugueses que ostentam o mesmo apelido: Abraão, Samuel e Salomão Usque.

Alguns estudiosos tendem a identificar Salomão Usque com o mercador Duarte Gomes, agente comercial da inteira confiança da famosa D. Grácia Nasci, que ficou conhecida entre os cristãos-novos como ‘A Senhora’[2]. Outros, pelo contrário, entendem que Salomão Usque corresponde ao nome verdadeiro de um indivíduo, não se tratando apenas de um simples pseudónimo literário[3].

A este respeito, impõe-se assinalar neste momento a publicação no ano transacto de um importante trabalho intitulado Gli ebrei, i marrani e la figura di Salamon Usque, da autoria de Gabriella Zavan, que tem o mérito de tratar, com inegável clareza e profundidade, as várias questões que envolvem a figura de Salomão Usque e que têm atraído o interesse de cada vez mais estudiosos.

Esta autora procura traçar a biografia possível do enigmático tradutor de Petrarca, embora constate não ter sido encontrado, até ao momento, qualquer vestígio da existência de Salomão Usque nos locais onde ele supostamente terá vivido. Na verdade, Zavan põe em evidência a situação distinta em que se encontra cada uma das figuras: enquanto as únicas referências disponíveis sobre a vida de Salomão Usque se depreendem apenas da sua obra literária, ao invés, sobre Duarte Gomes «annovera un gran numero di episodi e di particolari che ci permettono di seguire, almeno fino a un certo punto, le varie tappe della sua esistenza e di ricostruirne la personalità.» (Zavan 2004: 79).

No entanto, embora tenha efectuado a mais completa análise alguma vez feita sobre estas duas supostas figuras, a investigadora italiana opta, de forma assumida, por não tomar uma posição definida sobre a polémica questão central da identificação entre Salomão Usque-Duarte Gomes, que continua a ser, nas suas palavras, «un enigma tuttora aperto».

Não obstante os notáveis avanços na investigação, as sombras teimam em continuar a ocultar a verdadeira face do judeu português que se esconde por detrás dos pseudónimos «Salomon Usque Hebreo» e «Salusque Lusitano».

Assumimos, desde já, a nossa firme convicção de que Salomão Usque e Duarte Gomes são a mesma pessoa, sendo nosso objectivo declarado neste trabalho demonstrá-lo à luz, quer de elementos já conhecidos, quer de outros que traremos de novo à colação.

A tese da identificação entre Salomão Usque e Duarte Gomes assentou, desde sempre, numa prova de indesmentível importância. Referimo-nos, em concreto, ao testemunho directo de Amato Lusitano, o ilustre médico natural de Castelo Branco, que numa das suas famosas Curationes traça um retrato minucioso do seu compatriota Duarte Gomes, a quem assistiu de uma febre terçã na cidade de Ancona:

Duarte Gomes Lusitano, um varão de respeito, douto e poeta não vulgar, o qual, para traduzir com sucesso para a língua castelhana os versos hendecassílabos e as canções de Petrarca escritos em língua italiana, [usa de] de um modo tão adequado, conveniente e ajustado aos seus próprios ritmos que suscita a admiração de todos; aos 45 anos, chega ele de Veneza, onde se dedica a variados e importantes negócios comerciais, a Ancona onde, tendo sido convidado por amigos, como é hábito, para opíparos e lautos banquetes, caiu doente com uma dupla terçã.[4]

Não se pode ficar indiferente perante as palavras claras de Amato, que é bastante explícito na descrição das múltiplas aptidões de Duarte Gomes, sobretudo enquanto exímio tradutor da poesia de Petrarca. No dizer do célebre médico, o mercador português, além de ser um homem respeitável e douto, suscitava a admiração de todos com as suas traduções perfeitas da poesia do vate de Arezzo, que denotavam ser possuidor de uma apurada sensibilidade poética. Não se pode também deixar de notar que Duarte Gomes traduz da língua italiana para a castelhana à semelhança do seu suposto conterrâneo Salomão Usque.

As palavras de Amato adquirem ainda mais importância pelo facto de ele partilhar, quer com Duarte Gomes, quer com Salomão Usque, a dupla condição de hebreus e lusitanus. Além disso, como se verá, o médico albicastrense há muito que conhecia Duarte Gomes, já que ambos tinham sido colegas no Estudo de Salamanca.

No entanto, Amato Lusitano não é a única testemunha contemporânea das qualidades excepcionais de Duarte Gomes como tradutor de Petrarca. De facto, o humanista italiano Girolamo Ruscelli, no longo texto introdutório com que dedica ao mercador português o seu tratado Del modo de comporre in versi nella lingua italiana, tece rasgados elogios às suas qualidades excepcionais como poeta e, em particular, como exímio tradutor de Petrarca para a língua castelhana, afirmando que «fra molti dotti e rarissimi componimenti suoi, ella habbia fatto il Petrarca nostro in lingua Castigliana, che à qui non sapesse la verità dell’istoria si farebbe dubbioso in quale di queste due nobilissime lingue Italiana, ò Spagnola il Petrarca l’avesse scritto»[5].

Amato e Ruscelli, duas figuras das relações próximas de Duarte Gomes, apresentam-nos assim dois depoimentos coincidentes, irrefutáveis e inequívocos de que este era um exímio tradutor de Petrarca para a língua castelhana.

(Temporalmente falta una imagen. Se solucionará lo más rápido posible.)

Não se estranha, por isso, que tenha havido desde tempos recuados uma tendência notória, por parte dos investigadores, para presumir que Salomon Usque Hebreo ou Salusque Lusitano era um pseudónimo literário atrás do qual se escondia o rosto de Duarte Gomes[6]. Ambos eram judeus, eram portugueses, tinham amigos comuns, estavam estabelecidos em Veneza e, como se não bastasse, ambos traduziam Petrarca para a língua castelhana de forma igualmente brilhante e talentosa.

Entre os membros da Nação Portuguesa, estabelecidos por esta época em Veneza, Ferrara ou Ancona, haveria, por certo, alguns indivíduos com uma formação humanística do mais alto nível, capazes de empreender a difícil e exigente tradução da obra de Petrarca, tarefa que o próprio Salomão Usque, na sua dedicatória da tradução ao príncipe Alessandre Farnese, considera ser «Opera in verità da molti ricercata, da pochi intrapresa, e da nessuno finora portata a termine.» (fl. a2r).

Mas será que de entre o grupo de judeus portugueses que poderiam reunir as condições necessárias para o fazer, um grupo já por si bastante restrito, será provável, perguntamos nós, que existam dois indivíduos capazes não só de traduzir um texto poético difícil, nunca até então traduzido para castelhano, mas também de o fazer com a arte e o engenho que os testemunhos reconhecem a Duarte Gomes e que a tradução impressa de Salomão Usque evidencia? Forçoso se torna admitir, em nossa opinião, que as probabilidades da ocorrência de uma conjugação tão favorável não podem ser muito elevadas.

Acresce também que nunca se encontrou até à presente data, nem em versão impressa nem manuscrita, tradução alguma de Petrarca para língua castelhana, atribuída ou de alguma forma atribuível a Duarte Gomes. Tudo leva a crer, portanto, que os dois nomes, Duarte Gomes e Salomão Usque, correspondem, afinal, a uma única pessoa.

Assumida que está a identificação das duas figuras, convém agora procurar compreender como foi possível ao mercador lusitano traduzir, da forma como o fez, o Canzoniere de Petrarca para a língua castelhana.

Duarte Gomes não era apenas um simples agente comercial da inteira confiança de D. Grácia Nasci, de quem era também médico particular. Não restam dúvidas de que este cristão-novo português, ao serviço dos Mendes-Benveniste, era um indivíduo excepcional com uma cultura e uma formação humanísticas do mais alto nível. Trata-se de alguém, como se verá, que ergueu bem alto o seu nome junto dos círculos mais restritos do poder e da cultura, durante os anos da década de trinta em que viveu em Lisboa.

Duarte Gomes nasce precisamente na cosmopolita e populosa capital do reino, no ano de 1510, no seio de uma família de cristãos-novos de alta categoria social[7]. Nos verdes anos da sua juventude, tal como era hábito entre os descendentes das famílias socialmente mais elevadas, assistiu, muito provavelmente, às lições de algum mestre conceituado de latinidades, que lhe terá ministrado os rudimentos necessários no domínio das línguas e literaturas clássicas e da gramática, para mais tarde prosseguir, sem dificuldade, os estudos universitários.

Nas primeiras décadas de Quinhentos, os jovens portugueses que continuavam os seus estudos, faziam-no, em geral, na Universidade então estabelecida em Lisboa, ainda que muitos partissem para frequentar universidades estrangeiras, por vezes com o alto patrocínio do próprio monarca português. Entre as instituições estrangeiras, a consagrada Universidade de Salamanca era aquela que colhia a preferência de um maior número de alunos oriundo de terras lusitanas (Serrão 1962).

Entre os escolares portugueses contavam-se inúmeros cristãos-novos que prosseguiam os seus estudos, ainda muito jovens, na cidade do Tormes. Para muitos deles, cursar medicina constituía um dos objectivos prioritários e dava, no fundo, continuidade à já antiga e reconhecida tradição judaica no estudo e no exercício da arte de Galeno. Foi precisamente este o percurso que Duarte Gomes trilhou nos vários anos em que frequentou o Estudo de Salamanca. Disso não subsistem dúvidas, já que é possível documentar todo o percurso deste jovem promissor. Dá-se a coincidência extraordinária de termos à nossa disposição, por um lado, os registos existentes no Arquivo da Universidade de Salamanca e, por outro, uma transcrição integral dos próprios diplomas académicos que foram passados a Duarte Gomes como prova dos seus bacharelatos em Artes e em Medicina. Esta situação verdadeiramente excepcional fica a dever-se ao facto de Duarte Gomes ter apresentado os seus diplomas ao Tribunal do S. Uffizio di Venezia no decorrer do processo de que foi alvo em 1568, o qual contém uma transcrição fiel e certificada dos mesmos, realizada a partir dos documentos originais (Ioly Zorattini 1982: 74-76).

É assim possível saber que Duarte Gomes obteve o grau de bacharel em Artes e Filosofia, no dia 10 de Março de 1529, «sub disciplina reverendi Pedri Margallio». Pedro Margalho, célebre teólogo lusitano, leccionou durante vários anos na Universidade de Salamanca e coube-lhe a ele avaliar o mérito do jovem candidato a bacharel, que à data contava apenas dezoito anos (Serrão 1962: 170-177). Uma vez que eram necessários três anos de estudos para alcançar o grau de bacharel em Artes, é lícito supor que este terá principiado os seus estudos em Salamanca, com apenas quinze anos de idade, no início de 1526.

O jovem aluno reunia então os requisitos necessários para prosseguir os seus estudos em Medicina, que iniciou logo de seguida. Cerca de quatro anos volvidos, no preciso dia 24 de Abril de 1532, prestava as provas conducentes ao bacharelato em medicina perante o também português Doutor Agostinho Lopes, uma das figuras marcantes da Universidade de Salamanca (Serrão 1962: 223-225).

Duarte Gomes faz um percurso exemplar na Universidade de Salamanca ao longo dos cerca de sete anos de formação em que se bacharelou sucessivamente em Artes e em Medicina. Na verdade, os estudos do poeta-mercador em Salamanca não constituem novidade desde que Ioly Zorattini transcreveu e publicou o processo inquisitorial movido ao mercador português, o qual inclui a cópia certificada dos documentos comprovativos dos graus obtidos.

 

Laura e Petrarca, miniatura dal Canzoniere
Fuente: www2.polito.it/.../Petrarca/Petrarca.html

 

No entanto, a importância dos estudos do tradutor de Petrarca só é verdadeiramente perceptível se tivermos em conta o papel crucial que o Estudo de Salamanca desempenhou na formação da fina-flor do Humanismo português. À cidade do Tormes acorreram cerca de oitocentos estudantes portugueses apenas durante a primeira metade de Quinhentos num movimento que se acentuou bastante a partir de meados da década de vinte. Os cristãos-novos constituíram sempre um grupo relativamente numeroso entre estes escolares salmantinos, e não restam dúvidas de que a geração onde se inclui Duarte Gomes veio a contribuir de modo decisivo para a consolidação e renovação do movimento humanista português.

De facto, Duarte Gomes integra um grupo excepcional de escolares portugueses de ascendência hebraica, cujo percurso académico é, em grande medida, comum tanto nas matérias cursadas, como no período em que decorreram os estudos. Falamos de alguns dos nomes mais reputados do Humanismo português em várias áreas do saber, que constituíam, no fundo, os descendentes directos de destacadas famílias judaico-portuguesas ainda a viver em Portugal.

Como já referimos, os estudos de Duarte Gomes em Salamanca decorreram entre os anos de 1526 e 1532. Durante os primeiros anos da sua permanência no Estudo, cruzou-se com os seus ilustres compatriotas cristãos-novos Pedro Nunes e Jerónimo Cardoso, que se encontravam a terminar os seus cursos. Não muito antes, também Garcia de Orta tinha sido aluno em Salamanca.

Mais importante, porém, se torna assinalar a existência de um grupo de notáveis escolares portugueses, todos eles de origem hebraica, a cursar medicina juntamente com Duarte Gomes. Trata-se, de facto, de uma geração de ouro com um percurso quase coincidente na cidade do Tormes. Neste grupo se inscrevem vários humanistas notáveis como Amato Lusitano, António Luís, Diogo Pires, Luís Nunes de Santarém ou Tomás Rodrigues da Veiga, que adquirem em conjunto uma formação a todos os títulos excepcional, como os seus percursos individuais quer em Portugal quer na diáspora o podem, sem dúvida, comprovar.

Antes do regresso à sua cidade natal, Duarte Gomes encaminhou-se para Medina del Campo, onde afirma ter estudado também. Não se demorou, porém, muito tempo na famosa praça comercial castelhana, já que em Dezembro de 1533, ou seja, no ano seguinte àquele em que obtivera o bacharelato em Medicina em Salamanca, o vamos encontrar de novo em Lisboa.

No decurso do processo que lhe foi instaurado em 1555 pelo S. Uffizio di Venezia, ao ser interrogado sobre a sua profissão, ele respondeu: «Adesso esercito la mercantia, ma non l’ho esercitata sempre perchè per avanti ho studiato in lettere humanis et artibus et philosophia et medicina et etiam aliquid in sacra theologia et studiai a Medina, doppo ho letto publicamente in Ulisbona con salario regio»[8]. Esta declaração constitui uma síntese esclarecedora dos estudos efectuados por Duarte Gomes ao longo da sua existência. Ficamos assim a saber que também se dedicou ao estudo da teologia em Salamanca e que, após a sua breve passagem por Medina del Campo, foi professor em Lisboa «con salario regio».

Curiosamente, os investigadores não têm conseguido comprovar de forma documental a actividade docente que Duarte Gomes diz ter exercido na cidade de Lisboa[9]. Ioly Zorattini, a quem devemos a publicação integral dos dois processos inquisitoriais venezianos instaurados ao cristão-novo português, afirma ter efectuado, sem qualquer sucesso, pesquisas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no sentido de documentar esta prática docente (Ioly Zorattini 1980: 230, nota 15).

Na verdade, a documentação comprovativa do percurso académico lisboeta, não só de Duarte Gomes como de vários dos seus antigos colegas de Salamanca, existe de facto, mas encontra-se à guarda do Arquivo da Universidade de Coimbra. Referimo-nos em concreto aos dois códices originais conhecidos pelo nome de Livros da Universidade de Lisboa[10], que contêm o registo manuscrito de variados actos académicos, cuja leitura permite traçar um retrato fidedigno da vida da Universidade de Lisboa desde 1506 até 1537, data em que foi transferida em definitivo para Coimbra, por ordem de D. João III.

Ora, tanto Duarte Gomes como os seus colegas salmantinos, a que já nos referimos, regressaram ao seu país, após a conclusão dos estudos. Uma parte significativa destes jovens vai envidar todos os esforços no sentido de ingressar no corpo docente da Universidade de Lisboa. Esse era, sem dúvida, o objectivo central de muitos dos recém-chegados e vários foram os que viram os seus intentos coroados de sucesso. Os antigos colegas reencontram-se assim na capital do reino, onde travam uma dura competição por um lugar efectivo no Estudo Geral de Lisboa: Duarte Gomes, António Luís, Luís Nunes de Santarém, Manuel Reinel e Manuel Lindo são intervenientes directos nesta disputada corrida ao ingresso na carreira docente.

Formados em Salamanca, estes jovens trouxeram consigo as tendências humanistas de que estavam imbuídos e contribuíram decisivamente para a renovação e qualificação do ensino praticado na Universidade de Lisboa.

António Luís, Duarte Gomes e Manuel Reinel iniciam sem demora o processo de obtenção da licenciatura em medicina que era a etapa seguinte na sua carreira académica, após o bacharelato de Salamanca. Num curto espaço de tempo, cumpridas as necessárias formalidades, os três obtêm a licenciatura em Medicina pela Universidade de Lisboa.

No dia 31 de Janeiro de 1534, celebra-se o termo do marcar dos pontos e auto do exame privado em Medicina efectuado pelo bacharel Duarte Gomes, que lhe havia de valer o grau de licenciado[11]. Entre as várias testemunhas do acto conta-se o ainda bacharel Luís Nunes.

Anunciava-se então para breve um disputadíssimo concurso, cuja abertura estava prevista para as férias de Verão. Em cumprimento da vontade de D. João III, o Conselho da Universidade, reunido no dia 12 de Agosto de 1534, resolve pôr a concurso a cadeira de Artes, que havia pertencido ao famoso médico e botânico Garcia de Orta. Pela respectiva ordem de inscrição, encontramos entre os oponentes a este concurso o bacharel Manuel Dias, o licenciado António Luís, o licenciado Manuel Reinel, o licenciado Manuel Lindo, o licenciado Duarte Gomes e, por último, o licenciado Jerónimo Fernandes[12].

No dia 9 de Novembro de 1534, realiza-se finalmente a eleição do vencedor «da cadeyra dartes que vagou pella ausentia do Licenciado orta»[13]. Dos dezoito votos contados, Duarte Gomes recolheu nove, Manuel Lindo seis, Manuel Reinel dois e Manuel Dias apenas um. António Luís, por seu turno, não teve nenhum voto. Termina desta forma o renhido concurso com a eleição e tomada de posse do vitorioso Duarte Gomes por um período de três anos, a contar desde a data da abertura da vaga.

Algum tempo antes da eleição de Duarte Gomes, no dia 1 de Outubro de 1534, tivera lugar a abertura oficial do ano lectivo, com a habitual e solene oração de sapiência proferida em língua latina pelo humanista André de Resende (1956).

Ora, um dos momentos mais altos da carreira académica de Duarte Gomes ocorreu um ano depois, no dia 1 de Outubro de 1535, quando foi convidado para proferir publicamente a oração de sapiência na abertura desse ano lectivo (Ferreira 1937: 815, 858 e 879). Tratava-se dum acto da maior solenidade que decorria na presença das mais importantes autoridades, no qual era costume o orador fazer o elogio das disciplinas ministradas no Estudo Geral. Não era forçoso que a figura designada para apresentar a oração latina fosse um docente universitário. Para o efeito, eram convidadas, por vezes, individualidades de grande talento, mesmo que não possuíssem qualquer vínculo à instituição.

Assim aconteceu em 1534 com a oração proferida por André de Resende, e de novo, em 1536, quando coube a Jerónimo Cardoso, que também foi estudante em Salamanca, a apresentação da mesma oração (Cardoso 1965). Nem um nem outro foram alguma vez docentes do Estudo Geral de Lisboa: ambos foram convidados pelo seu reconhecido mérito. A escolha de Duarte Gomes para apresentar a oração de sapiência, numa altura em que contava apenas vinte e cinco anos, constitui, pois, uma das consagrações máximas a que alguém podia aspirar tanto na carreira académica como fora dela e apenas estava ao alcance de um grupo bastante restrito[14]. As orações de sapiência de André de Resende (1534), Duarte Gomes (1535) e Jerónimo Cardoso (1536) são, aliás, as últimas a serem proferidas no Estudo Geral de Lisboa, já que o ano lectivo de 1536-1537 ficaria marcado pela transferência definitiva da Universidade para Coimbra.

Duarte Gomes também foi obrigado a mudar não apenas de cidade mas de país. Para trás deixou, em viagem sem regresso, as margens do Tejo rumo a Antuérpia. Não é hora, porém, de lhe seguir o rasto, pelo que nos resta concluir em breves palavras este trabalho[15].

Por detrás deste homem invulgar, cujo percurso foi semelhante ao de tantos outros judeus portugueses, esconde-se uma das figuras mais destacadas do humanismo português de Quinhentos: poeta e mercador, médico e financeiro, professor e diplomata foram algumas das principais actividades que exerceu com igual distinção quer na terra que o viu nascer quer naquelas para onde se viu obrigado a partir.

Curiosamente, os pseudónimos que durante tanto tempo ocultaram a sua verdadeira identidade, «Salomon Usque Hebreo» e «Salusque Lusitano», são os mesmos que revelam esta dupla condição de judeu e português, uma relação difícil mas profunda e dolorosamente sentida tanto por ele como pelos milhares de homens e mulheres que se viram obrigados a abandonar uma terra que também era a sua.

Apesar de tudo, Duarte Gomes, à semelhança dos seus conterrâneos da Nação Portuguesa de Ancona, Ferrara ou Veneza, nunca deixou de assumir, onde quer que fosse, a sua condição de português com dignidade e orgulho.

De Lisboa a Veneza, foi longo e penoso o caminho percorrido por esta personalidade excepcional, que merece, sem sombra de dúvida, um lugar de destaque na história do humanismo judaico-português.

Referências

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2003 The woman who defied Kings. The life and times of Doña Gracia Nasi - Jewish leader during the Renaissance. St. Paul: Paragon House.

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1965 Oração de sapiência proferida em louvor de todas as disciplinas. Reprodução fac-similada da edição de 1550. Tradução de Miguel Pinto de Meneses. Introdução de Justino Mendes de Almeida. Lisboa: Instituto de Alta Cultura.

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Noticias Chronologicas da Universidade de Coimbra [...]. Primeira parte [...]. Segunda edição, organizada por Joaquim de Carvalho. Coimbra: Por ordem da Universidade de Coimbra.

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Zavan, Gabriella

2004 Gli ebrei, i marrani e la figura di Salomon Usque [prefazione di Aron di Leone Leoni]. Treviso: Santi Quaranta.

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NOTAS


[1] A Biblioteca Nacional de Lisboa guarda um exemplar da variante «Salomon Usque Hebreo» (Res. 2444 V).

[2] Entre a vastíssima bibliografia existente sobre a família dos Mendes-Benveniste, referem-se apenas dois importantes trabalhos publicados recentemente por H. P. SALOMON – A. di Leone LEONI (1998) e A. A. BROOKS (2003).

[3] Aproveitamos a oportunidade para fazer referência à nossa recensão crítica ao estudo de G. Zavan, acabada de publicar em Zakhor – Rivista di Storia degli Ebrei d’Italia 8 (2005), 228-232.

[4] AMATO LUSITANO, Amati Lusitani medici praestantissimi curationum medicinalium, centuriae duae, quinta et sexta. Lugduni, apud Gulielmum Rouillium, 1580, p. 85 [centuria V, curatio XIX]:

Eduardus Gomez Lusitanus, uir grauis, doctus et poeta non uulgaris, ut qui Petrarchae numeros hendecasyllabos et cantiunculas Hetrusca lingua scriptas feliciter in linguam Hispanicam uertat, ita cordate, apposite et suis numeris consone, ut omnibus admirationi sit. Hic anno aetatis suae 45 ex Venetiis ubi uaria et ingentia mercium negocia exercet, Anconam uenit, ubi ab amicis (ut fieri solet) ad opipara et lauta conuiuia inuitatus, in duplicem tertianam lapsus est.

[5] Girolamo RUSCELLI, Del modo di comporre in versi nella lingua italiana, trattato di Girolamo Ruscelli, Nel quale va compreso vn pieno & ordinatissimo Rimario. Nuouamente mandato in luce. Venetia, appresso Gio. Battista Sessa et Melchior Sessa fratelli, [1558], fl. a5v. Para uma análise minuciosa da longa dedicatória de Ruscelli a Gomes, cf. G. ZAVAN (2004: 88-91).

[6] Antes da publicação do artigo de C. ROTH (1944), a generalidade dos investigadores, quase sempre com base no testemunho de Amato, deu mais ou menos por adquirida a identificação entre Salomão Usque e Duarte Gomes, sem contudo ter aprofundado muito a questão. Para uma análise pormenorizada do avanço da investigação com as contribuições de N. Antonio, H. Graetz e M. Kaiserling, cf. G. ZAVAN (2004: 67-71). H. P. SALOMON (1991: 63-66) foi o primeiro investigador, de que temos conhecimento, a vir a público refutar a tese de Roth de que Salomão Usque e Duarte Gomes eram pessoas distintas, apesar de não ter apresentado argumentos decisivos no sentido de justificar a sua posição.

[7] Aproveitamos o ensejo para dar conta da publicação recente de um importante estudo intitulado The Hebrew Portuguese Nations in Antwerp and London at the time of Charles V and Henry VIII. New documents and interpretations, da autoria do consagrado investigador A. di Leone Leoni, a quem muito agradecemos a preciosa ajuda e incentivo na realização deste trabalho. O livro traz a público, como pudemos verificar de antemão, graças à gentileza do autor, novíssimos elementos, alicerçados num vasto corpus documental, não só sobre a família e as actividades de Duarte Gomes, como de muitos outros membros destacados da Nação Portuguesa.

[8] Cf. Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fl. 245v [declarações de 1 de Agosto de 1555]; cf. P. C. IOLY ZORATTINI (1980: 230).

[9] Em geral, os investigadores limitam-se a fazer uma simples referência ao excerto do processo acima transcrito para darem conta da prática lectiva de Duarte Gomes na cidade de Lisboa. Cf. A. A. BROOKS (2003: 381); G. ZAVAN (2004: 80).

[10] Devemos ao investigador A. Moreira de Sá a publicação monumental da documentação de difícil leitura constante dos Livros da Universidade de Lisboa: A. de Moreira de SÁ (ed.), Auctarium Chartularii Universitatis Portugalensis. Documentos coligidos e publicados por A. Moreira de Sá. Volume I (1506-1516) [Volume II (1516-1529); Volume III (1530-1537)]. Lisboa, Instituto de Alta Cultura, 1973-1979. Para uma descrição pormenorizada dos Livros da Universidade de Lisboa, cf. Auctarium, vol. I, pp. VIII-IX.

[11] Cf. Auctarium, vol. III, p. 204. No processo inquisitorial de Veneza, de 1568, encontra-se uma cópia do diploma de licenciatura passado a Duarte Gomes. Cf. Archivio di Stato di Venezia, Santo Uffizio, Processi, busta 159, fl. 12r-v; P. C. IOLY ZORATTINI (1982: 76-78).

[12] Cf. Auctarium, vol. III, pp. 227-228, «Conselho onde foi resolvido pôr por vaga a cadeira de Artes e lista de opoentes».

[13] Cf. Auctarium, vol. III, pp. 239-240, «Eleição do licenciado Duarte Gomes para a cadeira de Artes».

[14] Não tinha razão J. S. da Silva DIAS (1969: 572), quando esgrimia o suposto abatimento do Estudo como causa da transferência da Universidade para Coimbra: «A corporação preteriu, aliás, [Garcia de] Orta e [António] Luís em mais de um concurso, dando o seu voto a candidatos – um Duarte Gomes, um Luís Nunes – cuja fama só chegou até nós na vasa dos atropelos académicos.». De facto, as palavras de Silva Dias deixam de ter sentido à luz do que se conhece actualmente sobre a figura de Duarte Gomes, cuja vitória no concurso de 1534 não nos parece ter deslustrado, de forma alguma, a imagem do seu colega e amigo António Luís.

[15] Esta comunicação apresenta os primeiros frutos de uma investigação ainda em curso sobre a figura de Salomão Usque-Duarte Gomes, cujo resultado final tencionamos publicar em breve sob a forma de uma monografia.

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EL AUTOR

António Manuel Lopes Andrade, docente da Universidade de Aveiro, onde se doutorou em Literatura Latina, tem vindo a desenvolver a sua investigação nas áreas do Humanismo Renascentista Português, da Literatura Novilatina e da História dos Judeus Portugueses. Entre os seus trabalhos mais recentes, destacam-se a dissertação de doutoramento, intitulada O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do século XVI, e o presente artigo, A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português


Antonio Manuel Lopes Andrade, profesor de la Universidad de Aveiro, donde se doctoró en Literatura Latina, ha desarrollado su investigación en las áreas del Humanismo Renacentista Portugués, de la Literatura Neolatina y de la Historia de los Judíos Portugueses. Entre sus trabajos más recientes cabe destacar su tesis doctoral, bajo el título de O Cato Minor de Diogo Pires e a poesia didáctica do século XVI, y el presente artículo, A figura de Salomão Usque: a face oculta do humanismo judaico-português.


Curriculum, Página pessoal: http://www.dlc.ua.pt/classicos/Andrade.htm

e-mail: aandrade@dlc.ua.pt

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IMAGEN de portada:

Gravura que ilustra a última página da primeira tradução castelhana do Canzoniere de Petrarca, dada à estampa em Veneza, em 1567

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1 comentario

valentine -

muy grata pela ajuda